16 pontos sobre a recusa terapêutica por pacientes
O Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou uma série de esclarecimentos, em formato de perguntas e respostas, sobre a Resolução nº 2.232/19, que estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.
A norma, publicada em setembro, permite ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, o direito de recusar a terapêutica proposta pelo médico em tratamentos eletivos. Da mesma forma, é garantido ao médico o direito a objeção de consciência, quando, diante da recusa terapêutica do paciente, o médico, eticamente, deixa de realizar condutas que, embora permitidas por lei, são contrárias aos ditames de sua consciência.
1) Por que a Resolução 2.232/2019 foi publicada? Ela era necessária?
Sim. Essa Resolução era necessária, pois deixou claros aspectos relacionados à possibilidade de recusa terapêutica pelo paciente e aos parâmetros de objeção de consciência para o médico. Nesse sentido, estamos diante de um texto que constitui um verdadeiro marco para a modernidade nas relações entre médicos e pacientes por abraçar a autonomia de todos aqueles envolvidos no processo de atendimento.
2) Qual a relação da autonomia com o texto proposto?
É importante ressaltar que o Código de Ética Médica (CEM) atribuiu ao paciente a condição de parte principal da relação com o médico, legitimada em um vínculo de respeito mútuo que se materializa no consentimento livre e esclarecido. Nesse sentido, a autonomia resulta do conhecimento por parte do paciente e do médico sobre os riscos relacionados a um procedimento. Assim, a autonomia, uma expressão da liberdade e do conhecimento, é um bem jurídico do ser humano, valor reconhecido pela legislação brasileira.
3) Qual a base legal da Resolução 2.232/2019?
Em primeiro lugar, essa norma se baseia nos pressupostos do Código de Ética Médica. Além disso, busca inspiração na Constituição Federal, que, em seu art. 5º, determina que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Por sua vez, o Código Civil estabelece, no art. 15, que o paciente não pode ser submetido a qualquer procedimento terapêutico sem o seu consentimento. A própria Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), tratou expressamente da autonomia do paciente no art. 7º, pela qual os serviços que integram o SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, devendo preservar a autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral. Há outras normas que também tratam do assunto, como o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003), que no art. 17 assegura ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015), que atribui ao poder público a competência para garantir a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida, determinando que ela não poderá ser obrigada a se submeter a intervenção clínica ou cirúrgica, a tratamento ou a institucionalização forçada.
4) O que a Resolução 2.232/2019 muda na prática da assistência?
Com dissemos anteriormente, no âmbito médico, essa resolução do CFM esclarece a possibilidade do direito de recusa à terapêutica proposta ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, em tratamento eletivo. Ou seja, deixa claro, do ponto de vista normativo, que o direito à recusa terapêutica deve ser respeitado pelo médico, desde que ele informe ao paciente os riscos e as consequências previsíveis da sua decisão, podendo propor outro tratamento disponível. Restou expresso que não tipifica infração ética de qualquer natureza, inclusive omissiva, o acolhimento, pelo médico, da recusa terapêutica prestada na forma prevista nesta Resolução, tampouco caracteriza a omissão de socorro prevista no Código Penal. O contrário: o tratamento forçado poderia caracterizar crime.
5) Como fica a situação de crianças, adolescentes e pessoas que não estiverem com plena consciência de seus atos?
A dignidade do paciente incapaz, menor de idade ou adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estar representado ou assistido, foi especialmente considerada nesta Resolução. Nesses casos, impõe-se a prevalência do tratamento indicado, sem consentimento livre e esclarecido, em casos de risco de morte e de urgência e emergência com risco relevante à saúde. A Resolução estabelece ainda que havendo discordância insuperável entre o médico e o representante, assistente legal ou familiares do paciente quanto à terapêutica proposta, ele deve comunicar o fato às autoridades competentes (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.
6) Em que situações o médico pode não acatar a chamada recusa terapêutica manifestada por um paciente?
A Resolução 2.232/2019 autoriza o médico a rejeitar a recusa terapêutica nos casos definidos como abuso de direito, devendo ele, o médico, comunicar o fato ao diretor técnico do estabelecimento de saúde para a tomada das providências necessárias visando assegurar o tratamento proposto. A Resolução regulamenta a objeção de consciência como direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente. Na objeção de consciência o médico, eticamente, deixa de realizar condutas que, embora permitidas por lei, são contrárias aos ditames de sua consciência.
7) Como fica essa norma em casos de procedimentos de urgência e emergência?
A Resolução 2.232/2019 ressalva que em casos de urgência e emergência na ausência de outro médico e quando a recusa em realizar o tratamento trouxer danos previsíveis à saúde do paciente, a relação não pode ser interrompida por objeção de consciência, devendo o profissional adotar o tratamento indicado, independentemente da recusa terapêutica. A Resolução determina, ainda, que em situações de urgência e emergência que caracterizem iminente perigo de morte o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica, o que não significa um retorno ao paternalismo médico.
8) Há pessoas que afirmam que a Resolução 2.232/2019 não considera a vontade da mãe na recusa de um tratamento. Isso é verdade?
Não, isso não procede. Em primeiro lugar, deve ser lembrado que essa Resolução não foi elaborada e aprovada com foco na saúde materna. Como já dissemos anteriormente seu objetivo foi esclarecer a possibilidade do direito de recusa à terapêutica proposta ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, em tratamento eletivo. Ou seja, deixa claro, do ponto de vista normativo, que o direito à recusa terapêutica deve ser respeitado pelo médico, que obrigatoriamente deve informar ao paciente os riscos e as consequências previsíveis da sua decisão, podendo propor outro tratamento disponível.
9) Mas como fica a situação de mulheres grávidas? O que a Resolução 2.232 diz a esse respeito?
No em seu artigo 5º, a norma informa que a recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito. Isso ocorre porque nesse tipo de situação a recusa terapêutica pode colocar em risco a saúde de terceiros ou impedir o tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação. No caso, a recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto. Vejamos o seguinte exemplo: uma gestante que se recusa a se submeter a uma cesariana, sendo que o bebe está pronto para nascer e em sofrimento fetal. Nesta situação, o médico tem a possibilidade de não aceitar a recusa terapêutica, pois sua decisão pode representar a morte da criança e até da paciente. Porém, isso não significa que o ato será feito à força, mas o médico terá o direito de acionar as autoridades competentes para que tomem as devidas providências. Sem essa resolução, o ato de acionar as autoridades – na iminência de risco de morte – seria considerado quebra do sigilo médico, com consequências negativas para o profissional.
10) Ao dar um tratamento diferenciado à situação da mulher grávida, essa Resolução contribui com a desigualdade na população?
Não, isso não é verdade. Entende-se que o princípio da igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais. Não é possível, dentro desse princípio constitucional, tratar igualmente pessoas diferentes, em situações diferentes. Haveria ofensa ao princípio da igualdade o tratamento desigual entre duas gestantes em condições semelhantes. Mas não identificamos inconstitucionalidade em considerar abuso de poder a recusa terapêutica materna em realizar um procedimento que afastará o perigo à vida do filho. A situação paradigma, que permite comparação aproximada com essa, é a dos pais que se recusam a autorizar ou a permitir o tratamento de uma criança, expondo-a a perigo, retirando-a do hospital sem alta médica. O exemplo atual mais visível de recusa terapêutica dos pais é a recusa vacinal. Mas há precedentes nacionais e estrangeiros de intervenção judicial em situações semelhantes, todas decididas em favor do melhor interesse da criança. Em nenhuma dessas situações a Resolução recomenda que o médico assistente realize o procedimento à força, tampouco avança em equiparar, legalmente, o nascituro a uma criança nascida. Mas, eticamente, o feto também é um paciente. O pré-natal é feito no interesse da saúde e da vida da mãe e do filho.
11) Como o médico deverá agir em caso de objeção de consciência diante de uma situação de recusa terapêutica?
É necessário ressaltar que, excetuados os casos de risco iminente de morte, ressalvados na legislação em geral e na própria Resolução, o médico não poderá fazer qualquer procedimento sem contar com uma determinação legal prévia. Ou seja, ao identificar a situação, ele deve comunicar o fato às autoridades competentes, transferindo a elas a decisão, que será, inexoravelmente, tomada por um Juiz, a única autoridade constitucional com poderes para retirar ou suspender direitos fundamentais. Se o Juiz, ouvido o Ministério Público, entender que é caso de não se realizar o procedimento, a questão estará decidida no plano jurídico, sendo que a orientação de como proceder será comunicada ao médico e ao hospital. Antes disso, o médico não pode se omitir diante do risco ao feto por recusa terapêutica da mãe. Ressalte-se que a obrigação do médico para com a mãe e, também, o feto, é ética. Ambos são pacientes.
12) O que são as “situações de risco relevante à saúde”, dispostas no artigo 3º da referida Resolução 2.232?
Risco é evento futuro, é a “possibilidade de perigo”. Situações de risco relevante à saúde são aquelas que, na evolução do quadro, ao qual se opôs a recusa a terapêutica indicada, apresentam a possibilidade de comprometimento do “estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo dentro dos limites normais para sua forma de vida e para a sua fase do ciclo vital.”
13) Pela Resolução 2.232, há a possibilidade de o médico discordar de um pedido de se fazer uma terapêutica? Nesses casos, o médico pode se utilizar da objeção de consciência ou deverá cumprir o solicitado pelo paciente?
A objeção de consciência é um direito do médico ante a posição do paciente, aplicável quando se impõe um fazer ou um não fazer contrários à sua consciência. A posição do médico, nesse caso, é a mesma que consta do §2º, do art. 2º da Resolução CFM 1995/2012. Naquele trecho, está previsto que “o médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.” Assim, a ação e a omissão contrárias às boas práticas médicas, por imposição do paciente, autorizam a ruptura da relação médico-paciente por objeção de consciência, desde que o médico assegure a assistência nos termos previstos na Resolução, até que outro médico, sem a mesma objeção, assuma a assistência.
14) Se a paciente for mulher e gestante em estado vegetativo persistente, mas com diretiva antecipada na qual recusava procedimentos invasivos (por exemplo, nutrição e hidratação), é dever do médico realizar os procedimentos com a finalidade manter a vida biológica da paciente afim de proporcionar a continuidade da gestação?
Nem toda recusa terapêutica da mãe caracteriza abuso de poder em desfavor do nascituro. A Resolução diz “pode”, ou seja, depende do caso concreto, real. Por essa razão, não se deve rotular situações teóricas como abusivas; e se não são abusivas, a recusa terapêutica deve ser acolhida nos termos do art. 13 da Resolução. Quando há abuso de poder, instaura-se um conflito de interesses (de direitos e de expectativa de direitos) de dois pacientes, designados na Resolução pelo binômio mãe/feto. A Resolução não avança uma posição sobre o status jurídico do nascituro, contudo, reconhece que, para o médico, no pré-natal, o feto também é um paciente.
15) Nesses casos, o tratamento preconizado poderá ser realizado à força pelo médico?
Não. A recusa terapêutica, com abuso de poder materno, não autoriza o médico a realizar o tratamento indicado à força. Como já dissemos, nenhum caso de abuso de poder será resolvido à força, pelo médico, mas legitimará a quebra do sigilo para comunicar o fato às autoridades elencadas na Resolução, salvo em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo de morte, em que o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica. Por exemplo: uma grávida, com feto viável, sofre um acidente, com risco iminente de morte. Porém, nas suas diretivas antecipadas, ela se opôs ao parto cesariano. Posto que não há como se realizar parto vaginal nesse caso, qual é o papel esperado do médico: – fazer uma cesariana de emergência e salvar o feto ou cumprir a vontade da mãe de deixá-lo morrer? Dando continuidade a partir do mesmo caso anterior: a mesma mãe entra em morte encefálica. Médica e juridicamente, está morta. Não falaremos de diretivas antecipadas de vontade para não viabilizar discussões acadêmicas. Mas ela deixou documento escrito, um codicilo, por exemplo, em que não aceita a realização de cesariana para salvar o filho, que pretende “levar” consigo. Os familiares pedem o cumprimento da disposição de última vontade. Indaga-se: qual é o papel do médico? Deixar o feto morrer e cumprir a decisão da mãe ou salvá-lo com uma cesariana?
16) O preconizado pela Resolução já existe em normas de outros países?
Sim, há alguns paralelos. Anote-se que algumas soluções preconizadas pela Resolução têm inspiração em modelos estrangeiros, perfeitamente compatíveis com o sistema jurídico brasileiro. Uma dessas soluções é conhecida como conflito de deveres, prevista no artigo 36.º do Código Penal português. O texto diz que “não é ilícito o fato de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar. (…)”. Nesse caso, a Resolução tem o paciente como essa “autoridade” ética e moral, sujeita, contudo, a ter algumas ordens, ainda que legítimas, descumpridas para satisfazer um dever igual ou superior, a depender do caso concreto.