Pacientes com doenças raras têm direito a cuidados e acolhimento

Por Carol Sarmento

Gostaria de compartilhar com você uma história recente. Há poucas semanas, ouvi de uma paciente com doença rara (DR) que cuidei anos atrás sobre sua saga em conseguir um médico neurologista da rede privada de saúde para seguir em acompanhamento ambulatorial. Ouvi sobre o desinteresse de profissionais procurados, da recusa em ouvir sua história (que sim, é longa e cheia de particularidades pouco conhecidas pela maioria dos profissionais, uma vez que estamos falando de uma paciente portadora de DR!), da sensação de ser indesejada de estar ali na presença do médico. Justo ela, que já chega com um diagnóstico firmado, com anos de experiência na jornada de ser uma paciente com DR, com sua pasta organizada e seus exames classificados em ordem cronológica – ou seja, o trabalho do pretenso médico se dá em cuidar da paciente e familiar, se atualizar e partir para conhecer mais sobre a DR em questão. E o pior: isso aconteceu repetidas vezes, na sua busca por achar um profissional que ela pudesse chamar de seu médico. Quer saber algumas das frases que ela ouviu? “Procure outro profissional, não sei muito sobre sua doença”. “Não estou disponível para atender você”. Imagina ouvir isso?

Parei para refletir sobre a vida de uma pessoa como aquela paciente. São indivíduos com as mesmas necessidades de todos de sua faixa etária, com as mesmas vontades, os mesmos sonhos e anseios de oportunidades. São seres humanos que desejam ser vistos, entendidos e enxergados como todos os outros. Mas ocorre que as reações são imprevisíveis e excludentes na maioria das vezes por quem está do lado de lá. Isso gera isolamento, distanciamento, medo, reclusão, rejeição. O diferente. O que tem a pele que não é como as outras. O que tem detalhes em sua aparência que são peculiares. O que tem restrições de consumo ou de comportamentos que são frequentes às pessoas ditas “habituais”, não portadoras de DR.

Na maioria das vezes, as pessoas desconhecem nome, comportamento, fisiopatologia e a realidade de pacientes portadores de DR. E, de coisas e assuntos que não conhecemos, temos medo, preconceitos e pré-julgamentos – é típico do ser humano. Mas daí a corroborar profissional de saúde que age assim, especialista que recusa atendimento a paciente por ser portador de DR e, por conseguinte, demandar tempo e labor, me parece antiético, torpe e desumano. Ainda mais em tempos em que acesso à informação, atualização e conhecimento estão para todos os profissionais de saúde (especialmente médicos) à mão, no celular, ou sobre a mesa, no computador.

Conceitualmente, a OMS conceitua doença rara (DR) como sendo aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. Na União Europeia, estima-se que 24 a 36 milhões de pessoas tenham DR. No Brasil, o número estimado para esses casos é da ordem de 13 milhões de pacientes. E vale ressaltar que, dentro desse pool denominado DR, estão cerca de seis a oito mil tipos de doenças diferentes, em que a grande maioria dos pacientes são crianças, 30% dos pacientes portadores morrem antes dos 5 anos de idade, e 80% das DR são de origem genética. Por serem doenças raras e pouco conhecidas – tanto pela sociedade quanto por profissionais – geralmente elas são diagnosticadas tardiamente, e isso tem implicação direta em possibilidades de tratamento e sobrevida.

É um cenário muito desafiador. As DR são condições que se manifestam clinicamente a partir de diferentes sinais e sintomas, que variam não só de doença para doença, mas de pessoa para pessoa com uma mesma condição clínica. DR se apresentam, geralmente, como condições clínicas progressivas, degenerativas e incapacitantes. O cenário causa elevado sofrimento físico, psicológico e social para pacientes e familiares, além de encontrarem dificuldades para acesso a diagnóstico e tratamento.

Parece óbvio, mas, uma vez que o óbvio deve ser dito, vamos lá: pessoas com DR têm direito a ter esperança. A ter acesso a rede de apoio, a equipes multiprofissionais, a manter aceso em si o desejo e a expectativa de viver com qualidade. Como todo ser humano. Pessoas com doenças raras anseiam serem acolhidas e cuidadas. A terem seus sofrimentos cuidados (e isso vai muito mais além do que as questões físicas que a doença impõe!). Esses pacientes sofrem por serem relegados, não reconhecidos e não acolhidos por médicos que ignoram (literalmente!) as doenças que não conhecem e, também, não demonstram interesse em conhecer, em cuidar da pessoa que esteja ali, ao invés de necessariamente cuidar da DR em questão.

Esses pacientes merecem acolhimento, suporte para diagnóstico, orientações sobre cuidado, atendimento às necessidades individuais, cuidados e atenção eficazes oferecidos por equipe multiprofissional, continuidade de assistência com transições suaves de cuidado. Merecem acesso rápido a orientações de saúde confiáveis, envolvimento e apoio para seus cuidadores e familiares, informações claras sobre a DR em questão, comunicação e suporte para o autocuidado, decisões compartilhadas, apoio psicológico, social e espiritual, atenção às particularidades e necessidades individuais.

Olhando de perto as necessidades que citei, somente uma ou duas podem dizer respeito a situações muito específicas e peculiares a uma DR (suporte para diagnóstico de uma DR e informações claras sobre a mesma). O que demonstra que cuidar de um paciente demanda competências e habilidades que são comuns a toda e qualquer doença, seja ela prevalente, comum e frequente, seja uma DR.

O profissional de saúde não precisa saber sobre tudo e todas as doenças: isso é impossível e inalcançável! Mas ele precisa demonstrar interesse em se informar, saber acolher e cuidar da pessoa. Isso é possível, humano e compassivo!


*Carol Sarmento é médica intensivista e paliativista e criadora do Projeto Cuida.

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