Golpe da vacina e a responsabilidade jurídica dos hospitais

Por Gabriel Tyles e Alan Skorkowski

Alan Skorkowski

O Brasil e o mundo vivem uma das maiores e mais profundas crises de saúde e, que jamais passou pela imaginação da população, tampouco dos melhores filmes de ficção.

De toda forma, passados aproximadamente um ano do início da pandemia, o mundo já começou a ser imunizado, graças a ciência e ao esforço de empresas privadas para estudar e conseguir criar uma cura para o novo coronavírus.

Com efeito, a maioria dos Países caminhou e organizou-se para adquirir e distribuir as vacinas para a sociedade, enquanto o Brasil dividiu-se, politicamente, para distrair os eleitores para as próximas eleições.

A “corrida” pelas vacinas, mundo a fora, a indevida divisão política brasileira e a demora para a vacinação da população, geraram nos cidadãos brasileiros um sentimento de desespero e, assim, tão logo as vacinas aterrissaram no Brasil, foi possível perceber algumas condutas ilícitas daqueles que deveriam cuidar dos nossos idosos.

As condutas “ilícitas” puderam ser vistas por meio da imprensa que divulgou imagens de alguns agentes de saúde que, ao invés de vacinar os idosos estavam, literalmente, fingindo a aplicação.

De acordo com as imagens veiculadas pela imprensa, é possível visualizar os responsáveis pela vacinação, injetando a agulha, sem, contudo, pressionar a ampola, de modo a apenas furar o paciente e permanecer com o remédio para si. Também foi possível verificar em outros casos que os idosos estavam sendo “vacinados” sem o imunizante dentro das vacinas.

Esses atos apresentam diversas consequências. Contudo, quem será responsabilizado, somente o agente que praticou a conduta ou, também, o hospital, empregador do agente?

A esse respeito, é preciso dividir a resposta em três etapas. Sob o aspecto criminal, cível e até mesmo administrativo.

Gabriel Tyles

Sob o aspecto criminal, especificamente em relação a conduta daqueles agentes que fingem aplicar a vacina ou aplicam sem o imunizante, a conduta é extremamente grave, pois, efetivamente, o paciente, após ser imunizado, imagina que pode praticar atividades que antes não poderia, relaxando as suas medidas de proteção.

Ou seja, o agente confia que foi imunizado, relaxa as suas medidas de proteção e, por fim, pode acabar contraindo a doença.

De efeito, a conduta do agente que pratica esse atentado à vida do cidadão idoso amolda-se ao crime de homicídio previsto no artigo 121 do Código Penal, na exata medida em que o agente de saúde é “garante” daquela pessoa que imagina estar sendo imunizada, sendo, portanto, diretamente responsável por causar eventual resultado (art. 13, §único do Código Penal).

Assim, o agente não só expõe a vida e a saúde de outrem a um perigo iminente, mas, por ser “garante” e ter a assumido a obrigação de proteger o cidadão com a aplicação da vacina, acaba por assumir o risco de matar.

É evidente, pois, que para condutas tão graves e deste jaez, o artigo 121 do Código Penal, que prevê pena de seis até 20 anos, adequa-se, em tese, aos casos de falsa aplicação da vacina.

Há quem diga que o golpe da vacina poderia ensejar a aplicação do artigo 132, do Código Penal (“expor a vida ou saúde de outrem a perigo direto e iminente”), contudo, tal delito é subsidiário, ou seja, somente se aplica se a conduta não constitui crime mais grave.

Assim, levando-se em conta a conduta praticada, a pena prevista no artigo 121 do Código Penal (6 a 20 anos) e aquela do artigo 132 (03 meses a 01 ano), é evidente que o crime mais grave é mesmo o de homicídio, daí porque este deve ser aplicado aos casos do “golpe da vacina”.

No que se refere a responsabilidade do hospital, cumpre mencionar que no âmbito do Direito Penal não há como atribuir a responsabilidade criminal ao hospital, pois, dentre outras lições apreendidas desde o início da academia, não há responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito Penal, sem prejuízo de sua possibilidade no Direito Ambiental.

No Direito Civil, a responsabilidade dos envolvidos estará vinculada aos danos eventualmente suportados pelo paciente, que poderá ser de ordem material, quando atingir de alguma forma o patrimônio da vítima e, moral, na hipótese em que o prejuízo tenha repercussão na saúde do paciente, na exata medida em que a vida, a saúde, dentre outros direitos fundamentais, compõe os direitos de personalidade do cidadão.

Ainda no âmbito do Direito Civil, para que um profissional liberal seja condenado a indenizar qualquer vítima, é fundamental que se demonstre ação culposa (imprudência, imperícia, negligência) no exercício de sua profissão. Da mesma forma, é necessário que exista uma correlação de causa e efeito entre a conduta e o dano sofrido.

Em relação a responsabilidade civil dos hospitais e serviços de saúde congêneres, o sistema de responsabilidade é um pouco distinto e deve ser avaliado de forma particular, visto que a apuração do elemento culpa torna-se desnecessária, nos termos da Lei. Por exemplo, se for verificado algum defeito em determinado equipamento do hospital que venha ocasionar um acidente que afete o paciente, haverá responsabilização e dever de indenizar, ainda que não seja culpa dos agentes envolvidos. O hospital assume total responsabilidade pelo dano baseado no risco que seu próprio negócio pode trazer à saúde de seus pacientes. Na atividade relativa à vacinação, se aplicaria a mesma lógica.

Contudo, quando se avalia a responsabilidade do hospital em conjunto com a atuação do médico, como em uma cirurgia realizada em ambiente hospitalar, a lógica é diferente: o hospital será responsável, juntamente com o médico, em casos de “má-prática”, apenas se houver identificação da culpa do profissional e se este tiver alguma relação jurídica com o hospital, como no caso de o médico ser prestador de serviços ou funcionário.

Por fim, do ponto de vista administrativo, os profissionais envolvidos nas situações antes descritas deverão responder eticamente pela conduta perante seus respectivos órgãos de classe, tendo em vista a clara violação de preceitos e valores de sua profissão, especialmente aqueles relacionados à saúde, dignidade e vida do paciente. Haverá também, potencialmente, espaço para a instauração de um procedimento administrativo de natureza disciplinar, a depender da relação existente entre o autor do ato ilícito e a Administração Pública.

Tais processos de natureza ética tramitam nos conselhos de classes profissionais, autarquias criadas por Lei que têm como objetivos principais representar a classe, regulamentar a atividade profissional e fiscalizar o exercício da profissão. Os médicos, por exemplo, responderão a processos éticos no Conselho Regional de Medicina em que exerce seu ofício, e as decisões proferidas poderão ser revistas pelo Conselho federal de Medicina. As penalidades estão previstas nos códigos de ética de cada profissão, que geralmente estabelecem desde penas mais brandas (advertência) até as mais severas (cassação do exercício profissional). Os profissionais denunciados terão direito à ampla defesa e ao contraditório e poderão sempre contar com a assistência de um advogado.

Resumidamente, tratando-se especificamente do caso da vacinação e projetando um cenário em que entidades privadas e médicos venham a participar da campanha, a responsabilização dos profissionais seguirá a ordem de ideias antes apresentada: condutas culposas – e no limite, intencionais (na absurda hipótese do “golpe da vacina”) – poderão ensejar ações de natureza cível, ética e criminal, valendo registar que essas instâncias são independentes, o que significa que uma mesma conduta poderá ensejar processos em todas as referidas esferas, com diferentes punições.


*Alan Skorkowski é advogado graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Civil e Direito do Consumidor pela EPD – Escola Paulista de Direito. 

*Gabriel Huberman Tyles é advogado criminalista, professor universitário e graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É especialista pela PUC-SP em Direito Penal e Processo Penal, mestre pela PUC-SP em Direito Processual Penal. 

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