Direito da saúde: por que nem todo erro médico gera indenização?

Por Diwlay Ferreira Rosa e Wagner Roberto F. Pozzer

É comum associar um desfecho clínico negativo à ideia automática de responsabilidade médica. Contudo, no Direito brasileiro, o dever de indenizar exige mais do que a existência de um erro: pressupõe a comprovação de culpa, por negligência, imprudência ou imperícia.

Em muitos casos, o médico adota todas as providências cabíveis — observa os protocolos, requisita exames, monitora a evolução — e, mesmo assim, não acerta no diagnóstico. Nessas situações, não há omissão ou falha ética, mas o que a doutrina e a jurisprudência denominam erro escusável: falha justificável diante das limitações técnicas e científicas da medicina. Quando assim caracterizado, não se configura o dever de indenizar.

O erro escusável não representa descuido. Ocorre quando o profissional atua com diligência, utiliza os meios disponíveis e respeita os padrões da boa prática médica. Ainda assim, diante da complexidade dos sintomas ou da ambiguidade do quadro, o resultado pode não ser o ideal. No Brasil, a atividade médica, como regra, envolve obrigação de meio, não de resultado. O médico não promete cura, mas sim empenho técnico. Exigir infalibilidade seria não apenas injusto — seria incompatível com a própria natureza da medicina, que lida com probabilidades, não com garantias.

Essa compreensão está presente na jurisprudência. Três decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ilustram como a responsabilidade médica deve ser analisada com base na conduta adotada, e não no resultado. No processo nº 1001035-03.2022.8.26.0003, um paciente com fratura no fêmur foi atendido em hospital público, mas a lesão passou despercebida. O quadro evoluiu para infecção generalizada e óbito. A perícia indicou falha técnica no exame clínico inicial, e o tribunal reconheceu a culpa. A relatora, desembargadora Paola Lorena, apontou que “houve demora injustificada na adoção de condutas que o quadro clínico exigia, com prejuízos graves e evitáveis”.

Situação oposta ocorreu no processo nº 1001575-67.2021.8.26.0009. A família de uma paciente com câncer de mama alegou que ela teria contraído Covid-19 durante a internação hospitalar. Contudo, a perícia não confirmou falha nos protocolos de prevenção. O relator, desembargador Paulo Sergio Mangerona, afastou a responsabilidade por inexistência de nexo causal entre a conduta médica e a infecção.

O processo nº 1013633-58.2022.8.26.0562 revela uma hipótese intermediária. A paciente foi tratada inicialmente para um distúrbio gástrico, mas sofria de um problema cardíaco. Embora a confusão sintomática fosse plausível, a reavaliação do quadro demorou além do razoável. O tribunal entendeu que houve falha no tempo de resposta e fixou indenização por danos morais em R$ 10 mil. Para o relator, desembargador José Rubens Queiroz Gomes, “a dúvida diagnóstica é aceitável, mas o tempo excessivo de reavaliação gerou prejuízos concretos à paciente”.

Esses julgados demonstram que não basta apontar um equívoco. A responsabilidade civil exige prova de que o profissional se afastou do padrão exigido pela técnica médica e violou seu dever de cuidado. Julgar a conduta médica apenas pelo desfecho, sem considerar o contexto clínico e as medidas efetivamente adotadas, compromete a justiça da decisão.

Essa lógica estimula a chamada medicina defensiva: o médico deixa de decidir com base na melhor conduta assistencial e passa a agir por temor de processos, o que gera pedidos de exames desnecessários, recusa a pacientes com quadros complexos e prolongamento indevido de internações. O custo aumenta, a confiança na relação médico-paciente se deteriora e o próprio sistema de saúde é impactado.

A responsabilidade civil é um instrumento legítimo de controle e reparação. Corrige condutas desviantes, oferece compensações proporcionais e reforça os limites éticos da atuação médica. No entanto, quando aplicada sem critério, perde sua função pedagógica e transforma o erro humano em presunção automática de culpa. O Judiciário deve reconhecer o sofrimento, mas também distinguir o que decorre de uma falha evitável do que resulta dos limites intrínsecos da medicina. Sem essa distinção, pune-se não o descuido, mas o risco — e isso fragiliza tanto os profissionais quanto os pacientes.

Em tempos de judicialização crescente, reconhecer essa distinção é essencial para assegurar decisões proporcionais, tecnicamente fundamentadas e juridicamente responsáveis. Quando ela se perde, o direito deixa de proteger e passa a punir não a culpa, mas o acaso.


Diwlay Ferreira Rosa e Wagner Roberto F. Pozzer são, respectivamente, sócio e sócio coordenador no escritório Rubens Naves Santos Júnior. 

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