Conduta médica com paciente testemunha de Jeová

Por Thaíssa da Silva Nunes de Jesus

O princípio da autonomia da vontade do paciente é um dos princípios indicados pela bioética, sendo uma ciência que nasceu, basicamente, na década de 1970, em um momento importante sobre os questionamentos de como a medicina estava sendo exercida. Importante se faz destacar que, antes do surgimento da discussão da bioética, vinha acontecendo diversas atrocidades envolvendo seres humanos extremamente vulneráveis. O exercício e “experimentos” da medicina não tinham limites.

A título de exemplos, se faz imprescindível citar alguns terríveis episódios em que não era respeitada a autonomia da vontade do paciente, da mesma maneira em que as pesquisas médicas eram realizadas sem qualquer tipo de consentimento do paciente e/ou seu representante legal, senão vejamos: i. Willowbrook State School – NY (1940 a 1970): inoculação do vírus da hepatite em crianças com deficiência mental; ii. Hospital Israelita de Doenças Crônicas – NY (1963): inserção de células cancerígenas vivas em pacientes idosos hospitalizados; iii. Caso Tuskegee – Alabama (1972): 400 negros com sífilis foram recrutados com a expectativa de que estariam participando de uma pesquisa de história natural, quando, na verdade, foram deixados sem tratamento, a fim de se verificar como a doença se manifestava, e se havia diferença racial na evolução da doença, tendo em vista quejá haviam sido colhidos dados anteriores acerca da evolução em homens brancos.

A vista disso, a bioética surge com o intuito de resgatar o humanismo relativizado em prol dos avanços da biotecnologia (cura de doenças, tratamentos, etc).

Para uma relação efetiva entre o médico e o paciente, se faz importante que o médico opere o seu dever informacional, indicando o tratamento/procedimento adequado, explicando os riscos, preenchendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, formalizando as pontuações e anamnese em prontuário. Enquanto o paciente, por sua vez, estando lúcido e orientado, tire suas dúvidas, entenda o que está sendo proposto, e exerça sua autonomia, concordando ou não com o tratamento/procedimento proposto.

No entanto, o que acontece nos hospitais é bem mais complexo. Ao trabalhar em um hospital geral de grande porte, com serviço de urgência e emergência e, em média, 19 mil atendimentos mensais, se faz necessário analisar cada situação com uma lupa. Ocorre que, nas especializações de Ortopedia e Neurologia, existiam muitas cirurgias de urgência com pacientes devotos da religião Testemunha de Jeová. Nesse ínterim, é bem sabido que estes pacientes específicos se recusam a dar e receber sangue, ou componentes como glóbulos vermelhos e brancos, plaquetas, plasma, também coleta e armazenagem pré-operatória de sangue autólogo para posterior reinfusão. Posto isso, entra-se em constante conflito: princípio da autonomia da vontade do paciente versus a objeção de consciência do médico.

A objeção de consciência é um conceito defendido no Código de Ética Médica, que concede o direito ao médico a recusar prestar serviços que contrariem os ditames de suas ideologias, desde que a saúde do paciente não seja negligenciada. Neste ponto, é indispensável a menção dos artigos 7º e 8º da Resolução Nº 2.232, de 17 de julho de 2019: Art. 7º É direito do médico a objeção de consciência diante da recusa terapêutica do paciente. Art. 8º Objeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.

Cabe mencionar, ainda, que a viabilidade de qualquer procedimento cirúrgico, seja ele com, ou sem a utilização de hemoderivados, está condicionada a viabilidade técnico-científica pela equipe médica responsável. Neste caso concreto, em uma cirurgia de fêmur com colocação de placa, por exemplo, o paciente perde muito sangue, por este motivo, a equipe médica necessita de uma bolsa reserva. Ao aceitar o procedimento cirúrgico, o paciente da religião Testemunha de Jeová já manifesta sua vontade de não autorizar a transfusão, caso necessária. A equipe médica, por sua vez, conclui pela inviabilidade da intervenção, sabendo das inúmeras intercorrências que podem surgir, colocando a vida do paciente em risco. Portanto, o médico exerce o seu direito de objeção de consciência prescindindo a realização do procedimento diante da recusa terapêutica do enfermo.

Destarte, deverá a equipe médica comunicar o fato ao diretor técnico da Unidade Hospitalar para adoção das medidas que julgar pertinentes, respeitando o princípio da autonomia da vontade do paciente e da objeção de consciência da equipe médica. Não obstante, há de ser aludida a preocupação de que a interpretação da objeção de consciência não seja empregada para discriminar pacientes.

Sem dúvida, o assunto abre ampla discussão e, para tal, o membro do Conselho Consultivo do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Dr. Max Grinberg, se manifestou sobre o tema: “Em termos gerais, quando não se parte de motivos fúteis e/ou discriminatórios, nosso Código permite recorrer à objeção de consciência, no limite da urgência e emergência […]”. Conclui-se, portanto, que um princípio não se sobrepõe ao outro, devendo a análise atender a necessidade do caso concreto.


*Thaíssa da Silva Nunes de Jesus é gerente jurídica da Unimed Nova Iguaçu.

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