Lei precisa ser revista para acelerar tratamentos de doenças raras

Por Hélio Osmo

As doenças raras são enfermidades que acometem menos de 65 indivíduos a cada 100 mil nascidos, e ao todo existem cerca de 8 mil destas doenças, sendo que apenas 4% delas têm tratamento. Esta é uma realidade cruel, que levanta questões éticas, econômicas e também sociais, uma vez que só no Brasil existem cerca de 13 milhões de pacientes com alguma doença rara, que muitas vezes afetam drasticamente a qualidade de vida destas pessoas e de seus familiares. [1]

Em sua maioria, as doenças raras são genéticas e permanecem ao longo de toda a vida do paciente, mesmo que os sintomas não apareçam inicialmente. Muitas delas surgem logo no início da vida, e seus sintomas são bastante incapacitantes, impedindo que o paciente tenha uma vida ativa e saudável. Cerca de 30% das crianças com estas doenças morrem antes mesmo de completar cinco anos. [1]

Para piorar, na maioria das vezes o diagnóstico de uma doença rara só é confirmado após anos de uma peregrinação de médico em médico, com muitos diagnósticos equivocados e tratamentos desnecessários, que causam ainda mais impacto na saúde do paciente.

E mesmo após o diagnóstico correto, a grande maioria das doenças raras não têm tratamento adequado. Isso acontece por diversos fatores, mas o principal deles é a própria raridade da doença, que causa uma série de dificuldades no processo de pesquisa, desenvolvimento e aprovação de novos medicamentos específicos.

As indústrias farmacêuticas e as agências regulatórias – como a Anvisa, no caso do Brasil – estão mais habituadas a trabalhar com medicamentos para doenças comuns, com muitos pacientes, e definiram seus processos e regulamentos de acordo com a realidade destas doenças. Deste modo, as pesquisas e aprovações regulatórias seguem paradigmas em que são avaliados milhares de pacientes, o que não acontece no caso das doenças raras.

E como ficam os pacientes com doenças raras, visto que seu número é relativamente pequeno? Existe um menor número de laboratórios com foco em doenças raras e na produção de novos medicamentos para estas doenças. A pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos para doenças raras são grandes desafios, uma vez que, além do número pequeno de pacientes, há também a necessidade de se ter uma definição mais nítida do desfecho clínico, em um prazo em que as doenças não têm cura, o que não é viável para as doenças neurodegenerativas, por exemplo. Pela falta de opção terapêutica que atenda às necessidades de alguns pacientes, as empresas têm desenvolvido estudos clínicos com desenhos inovadores e biomarcadores, que podem, no curto ou médio prazo, trazer indicadores confiáveis da eficácia do tratamento.

Outro avanço real que gera uma expectativa positiva é a Inteligência Artificial (IA) aplicada em favor da geração de dados de vida real, que possam ser aplicados nas pesquisas. Estes dados seriam obtidos desde o diagnóstico precoce, sendo dados mais concretos sobre a história natural e a evolução da doença, com a definição de desfechos baseados em biomarcadores, além do compartilhamento de dados globais baseados em registros de pacientes. A IA também ajudaria a definir novos modelos estatísticos para definir evidências.

Diante desta realidade, o paciente com doença rara, que não pode esperar para receber o tratamento mais adequado disponível, é gravemente prejudicado, e muitas vezes sequer sobrevive para esperar a aprovação de um novo medicamento que poderia mudar o curso de sua doença.

Vendo a situação por outro ponto de vista, as agências reguladoras têm regras definidas para a aprovação de um medicamento e até entendem que, no caso de uma doença rara, tais regras são mais difíceis de seguir. No entanto, elas não podem simplesmente aprovar um medicamento que não segue as regras pré-estabelecidas, por maior que seja seu benefício para os pacientes.

Quando um medicamento já é aprovado em fase II pelo FDA, agência regulatória dos EUA, sua aprovação costuma ser mais fácil em outros países, mas muitas vezes nem o órgão estadunidense tem dados suficientes para esta aprovação. Deste modo, a espera para a realização da pesquisa fase III é muito longa, porque são poucos pacientes.

Ao mesmo tempo, o paciente que participa das pesquisas clínicas tem acesso antecipado ao medicamento, deixando de receber o tratamento oferecido pela rede pública, o que transfere os custos deste tratamento para o laboratório que realiza a pesquisa. Assim, a pesquisa clínica acaba sendo uma forma de garantir o acesso antecipado do paciente ao medicamento inovador e de transferir a responsabilidade do tratamento para a esfera privada. Isso acontece em todas as pesquisas, não somente as de doenças raras.

Existem avanços, mas não na velocidade necessária. Já existe um processo de registro acelerado na ANVISA, adotado também pelos EUA e Europa, que dá prioridade para situações de necessidades não atendidas, com possibilidade de registro ao final da fase II de estudos clínicos, dependendo da doença, com o estudo fase III já em andamento.

Além disso, o Ministério da Saúde criou, no ano passado, a Rede Brasileira de Pesquisa Clínica, mas ainda sem o conhecimento específico em doenças raras. Portanto, é necessário chamar os responsáveis para conversar, esclarecer a situação por meio de reuniões com o FDA e do EMA (agência regulatória europeia), para que os tomadores de decisão se sintam mais seguros.

Ultimamente, as empresas haviam deixado de trazer pesquisas clínicas para o Brasil, devido às dificuldades impostas pela legislação, como tempo de aprovação, exigência de fornecimento de medicamento após o término do estudo, entre outras. No entanto, com a Covid-19, por conta do infeliz alto número de infectados no Brasil, as pesquisas clínicas passaram a voltar ao nosso país. Isso também foi reflexo de uma mudança na legislação para doenças ultrarraras, que desde 2017 passou a exigir o fornecimento de novos medicamentos por apenas cinco anos após o estudo, não mais indefinidamente.

Porém, apesar dos avanços, ainda é necessária a criação de uma política de estado, e não de governo, para o segmento de medicamentos. Isso nunca foi feito pelo Brasil, ao contrário de países como Suíça, Japão, Inglaterra, EUA e outros. Por aqui, ainda está em tramitação “urgente” na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 7082, de 2015 (!!!), da Senadora Ana Amélia (RS), que define uma regulamentação para a pesquisa clínica no Brasil.

Diante de tudo o que foi relatado até aqui, um dos maiores desafios atuais no nosso país em relação às doenças raras é criar um padrão de pesquisa clínica que seja chancelado pelas agências reguladoras, específico para as doenças raras, para que se possa ter a comprovação da eficácia e da segurança de um novo medicamento de maneira mais adequada e para que possa ser demonstrado ao sistema que o produto realmente entrega aquilo que promete. Esses novos paradigmas científicos para as doenças raras permitiriam às agências, como a ANVISA, aprovar os novos medicamentos com mais celeridade e com compromisso de entrega de dados durante o desenvolvimento dos produtos.

É necessário também estudar uma maneira para que as pesquisas clínicas em doenças raras sejam colaborativas entre governos e empresas, para que possam ser considerados pacientes de pesquisas que tenham sido realizadas fora do Brasil.

Para esta mudança acontecer, deve haver uma união entre as associações de pacientes, as empresas que trabalham com doenças raras e os profissionais especialistas em pesquisas clínicas, na luta por uma legislação específica para o desenvolvimento de tratamentos que permita, no curto prazo, registrar um medicamento com potencial de salvar muitas vidas. Esta é uma evolução que precisa acontecer, para que não seja cada vez mais difícil conseguir a aprovação de novos medicamentos para doenças raras.

Estamos todos tentando contribuir com a ciência e a saúde. Precisamos somar esforços e superar estes desafios, para que a vida do paciente com doença rara seja enfim colocada como prioridade.

Referência: [1] – https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_raras_A_Z.pdf


*Hélio Osmo é presidente da SBMF – Associação Brasileira de Medicina Farmacêutica e global fellow da IFAPP – International Federation of Associations of Pharmaceutical Physicians & Pharmaceutical Medicine.

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