Os opioides e a má prática médica: um desafio assistencial
Por Silvia Tahamtani
Os opioides são os medicamentos analgésicos mais comumente usados e eficazes para dor de forte intensidade. Continuam a ser o principal tratamento analgésico para dor aguda grave, perioperatória e crônica, mas recentemente foram escrutinados devido aos níveis epidêmicos de abuso e overdose, observados, principalmente, nos Estados Unidos e Europa.
Pacientes que apresentam dores de forte intensidade, como, por exemplo, pacientes oncológicos, são candidatos ao uso dessa medicação por um tempo longo e indeterminado. Muitos deles, mesmo tendo conseguido a cura do câncer, podem permanecer com dor intensa e necessidade de tratamento para dor, perene. Nesse contexto, podem ser vistos como viciados, sendo duramente julgados e marginalizados por uma sociedade que ignora o assunto.
Como médica do grupo de DOR do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e responsável pelo seguimento de tais pacientes dentro do instituto, tenho presenciado esse sofrimento diariamente. Para exemplificar, relato o caso de paciente com diagnóstico de linfoma, que foi endereçado ao meu ambulatório por ‘ser viciado em morfina’, como a própria irmã o definia.
No primeiro atendimento ele me contou que há 10 anos havia sofrido um acidente automobilístico, ficando internado por 6 meses com dores fortíssimas e sob efeito de morfina para tratamento das múltiplas fraturas. Quando adoeceu novamente e experimentou novamente dor de forte intensidade, agora pelo câncer, solicitava incansavelmente por morfina, pois sabia do alívio que tal medicação proporcionava.
Esse comportamento dava a impressão de estar “viciado”.
Um exame clínico apurado com introdução da medicação correta (opioide e adjuvantes), uma conversa acolhedora (sem “pré conceito”), além de um olhar holístico colocando o paciente dentro do contexto atual, sem desprezar suas experiências passadas, tornou possível o controle da dor, sem nenhum comportamento suspeito até o seu falecimento.
Por muitos anos, uma das barreiras para o uso de opioides para tratar pacientes com dor crônica tem sido o medo do vício.
A dor no câncer é um fenômeno bio-psico-social-espiritual muito complexo. Ao longo da trajetória do tratamento do câncer, a exposição aos opioides costuma ser eticamente indicada, em alguns casos por longos períodos.
Contribuindo para a complexidade do tratamento da dor oncológica está a presença de abuso de substância psicoativa (cocaína, crack, heroína) anterior ou durante o tratamento. O controle da dor do câncer pode ser mais desafiador quando comparado com outros estados de dor crônica (benignas), nos quais pode ser apropriado limitar ou proibir o uso de opioides.
Cuidar de tais pacientes envolve pilares necessários para uma resposta completa: (1) conhecimento do assunto, (2) estratificação do risco, (2) tratamento ideal e adequado, (3) acompanhamento sistemático, (4) desmame da medicação, (5) reversão da overdose, (6) acompanhamento multidisciplinar.
Iniciativas como essas combaterão a má prática médica que leva muitos pacientes a um sofrimento enorme e desnecessário.
*Silvia Tahamtani é médica especializada em Dor do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e faz parte do comitê de dor oncológica da Sociedade Brasileira do Estudo da Dor (SBED).