Autonomia do paciente: desafios para o Direito e para a Bioética
Na Modernidade (séculos XV a XIX), a recuperação dos ensinamentos hipocráticos e galenos em sua pureza paternalista e as condições de desenvolvimento humano (social e econômico) precárias acabaram levando à grande crise da relação médico-paciente, que acabou se tornando ainda mais verticalizada.
O extremo paternalismo médico trouxe, por consequência, a subvaloração e a degradação do paciente, transformando-o em mero objeto da atuação médica (desumanização da Medicina), que se realizava em uma interação meramente técnica e instrumental limitada apenas ao orgânico, permitindo o prevalecimento de um interesse maior na enfermidade do que no enfermo.
No século XX, o desenvolvimento biotecnológico agravou essa situação, fazendo com que a Medicina se tornasse excepcionalmente especializada e racionalista, ainda mais científica e menos humana (Medicina Tecnocêntrica). Isso permitiu que a adoração à técnica, à tecnologia e a ambientes tecnicamente perfeitos prevalecessem sobre o respeito ao ser humano. A Medicina passa, então, a se concentrar cada vez mais na busca da cura – e não no doente.
E o desenvolvimento social e tecnológico das Ciências Médicas, embora tenha retirado a aura de sacralidade que pairava sobre o médico, retardou o reconhecimento da autonomia do enfermo quanto a tomar decisões sobre os rumos do seu tratamento, o que fez com que essa relação “acidentalmente conflitiva” se tornasse “essencialmente conflitiva”.
A chegada do século XXI, porém, deu força à preocupação de humanizar e democratizar a relação médico-paciente, em movimento que quebra o ideal organicista, valorizando a dignidade da pessoa humana e promovendo o exercício da autonomia do paciente.
Mas quebrar séculos de educação e prática médica paternalista é um desafio (bio)ético e jurídico. É muito comum vermos, na mídia, notícias que envolvem situações de desrespeito às escolhas do paciente, de violação do sigilo profissional fundadas em equivocados “justos motivos”, de conflitos resultantes de ausência de diálogo entre médico, paciente e até familiares.
Por isso, compreender as dimensões e complexidades que envolvem a relação médico-paciente é importante para entender o que significa afirmar a autonomia do paciente (autodeterminação), quais são os seus limites e como o médico pode, em situações muito específicas, a ela se opor. E é nesse contexto que o Biodireito e a Bioética somam forças, buscando reconhecer que a relação médico-paciente implica, necessariamente, uma interação comunicativa (diálogo), que proporciona a aproximação, o conhecimento e o respeito ao outro, uma vez que se realiza em três escopos: informativo, terapêutico e decisório.
Não há dúvidas de que a relação facultativo-enfermo exige, para a consecução dos seus fins, o respeito à dignidade da pessoa humana, uma via, obviamente, de duas mãos. O médico não pode ser paternalista a ponto de desconsiderar totalmente a vontade do paciente, expondo a sua integridade física e psíquica a decisões autoritárias e subjetivas; bem como o enfermo não pode exigir que o facultativo realize atos que contrariem sua formação ética ou a lei – ou, ainda, que estejam além de suas habilidades e conhecimentos profissionais.
Nesse contexto, o consentimento do paciente se apresenta para além de um valor humanitário (cujo fundamento está no personalismo), como exigência jurídica imposta a toda relação médico-paciente a partir do abandono da cultura médica paternalista, reconhecimento da autonomia (do enfermo e do titular dos dados clínicos) e do redimensionamento do direito à informação.
*Fernanda Schaefer é Advogada, PhD em Bioética e Professora do curso “Autonomia do paciente: desafios para o Direito e a Bioética”, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).