A negação da realidade vai nos cobrar um preço alto
Por Miguel Torres
Os números do Ministério da Saúde mostram que, com mais de 100 mil brasileiros vitimados durante a pandemia, o número de mortes causadas pelo novo coronavírus supera a média de óbitos diários por câncer e por doenças isquêmicas do coração.
Doença grave, de curso clínico ainda não bem compreendido, sem qualquer tratamento específico ou vacina a curto prazo, requer o engajamento de todos para sua superação.
Tomando de assalto a todos nós, atingiu em cheio nossa falsa ilusão de que os inacreditáveis avanços da moderna tecnologia protegeriam nossa integridade física, nos mantendo a salvo das epidemias do passado.
A pandemia tem sido objeto de discussões envolvendo desde argumentos racionais até misticismos infundados, provocando reações antagônicas, das quais a mais notável é a negação da realidade.
Protelamos a ida ao médico por temor de um diagnóstico grave, retardamos a busca do resultado de uma biópsia ou a esquecemos no fundo de uma gaveta. Em uma reação extremada, alguns chegam mesmo a destruir o resultado de seus exames. Boa parte, após um período de sofrida reflexão, volta a encarar a concreta realidade dos fatos.
Cidadãos em todo o mundo em clima de completo negacionismo desqualificam a gravidade da doença e sugerem tratamentos sem qualquer comprovação. Muitos se recusam mesmo a cumprir as determinações do uso da proteção facial, distanciamento social e rotineira higienização das mãos. Verdadeiras multidões se reúnem nos mais diversos países contra tais medidas, invocando desde pretensas violações de liberdades individuais às mais variadas teorias conspiratórias. Se irmanam, em um gesto totalmente irracional, indivíduos de distintos estratos sociais e de variados graus de acesso à cultura formal.
Vê-se igualmente uma tentativa de se desqualificar a ciência, atribuindo falsamente graves erros a organismos internacionais e a institutos de pesquisa.
Como nos ensinam os epistemologistas (filósofos que estudam a constituição do saber) toda teoria científica tem obrigatoriamente três predicados. Nenhuma, seja no campo de ciências exatas ou biológicas, é capaz de compreender todo o fenômeno estudado, deve ser passível de questionamento científico, e finalmente, será obrigatoriamente transitória. Tomar uma afirmação científica como sinônimo de verdade, conceito imutável, é equipará-la erroneamente a um conceito de ordem moral ou religiosa.
Vamos todos aprendendo durante esse árduo caminho. Cientistas e a indústria farmacêutica em todo o mundo se encontram vivamente empenhados na procura de uma vacina. Temos feito avanços notáveis nesta área, porém estamos em uma fase ainda muito preliminar. Certamente, chegaremos lá, com muito empenho e alguma sorte, ela deve estar disponível para o público nos próximos anos.
Até lá, seria bem útil se fossemos menos arrogantes – reconhecendo nossas limitações diante da pandemia, solidários e cuidando de nossa saúde física e mental. Um lembrete muito importante, até que esses tempos estranhos passem, o que certamente acontecerá: lave as mãos, use máscaras e mantenha o distanciamento social sempre que possível.
A negação da realidade tem nos cobrado e ainda nos exigirá num preço excessivamente alto!
*Miguel Torres é Radio-oncologista e presidente do Instituto de Radioterapia São Francisco.