Como pretendemos levar adiante o uso medicinal da cannabis?

Por Murilo Nicolau

Há uma década era iniciado o processo de reversão da proibição e perseguição sistemática da cannabis no Brasil, momento em que a ANVISA passou a olhar para a cannabis medicinal e publicar normas que autorizaram a sua prescrição e o acesso por pacientes que fazem uso terapêutico. Muito mudou desde então no cenário medicinal, mas parece que a população ainda não se acostumou com a ideia de que o uso medicinal da maconha é legal no Brasil.

Desde essa época, o valor e faturamento do mercado da cannabis legal no Brasil multiplicou-se diversas vezes. Assim como o número de pacientes que cresceu exponencialmente desde a criação da Autorização Excepcional de Importação de Produtos de Cannabis pela ANVISA.

Vimos também produtos surgindo e posteriormente sendo proibidos em nosso mercado, como as flores in natura. Quando publicada a proibição da sua importação, em agosto de 2023, o Estado brasileiro deixou desamparados milhares de pacientes que importavam legalmente tais produtos e foram proibidos, de um dia para o outro, de continuar utilizando essa via de tratamento.

A verdade é que quando o assunto é cannabis medicinal, há evidente ausência de legislação bem definida. Falta, como causa desta consequência, o interesse dos legisladores em levar adiante esse debate, punindo, restringindo e porque não, violando o direito de acesso à saúde de milhares de pacientes que são obrigados a recorrer a outros meios para acessar produtos e tratamentos de saúde que lhes foram prescritos.

É hora, porém, de olharmos além da inércia do nosso legislativo, precisamos desde já começar a imaginar e compreender o mundo em que queremos viver quando a cannabis for legalizada. É questão de tempo, sem dúvida, para que isso ocorra. Mas quando ocorrer, precisaremos decidir assuntos importantíssimos como regras de segurança para cultivo, formas de acesso aos tratamentos e normas de compliance da indústria a fim de mitigar a possibilidade de desvios de conduta e garantir a rastreabilidade desses produtos.

Em alguns Estados dos EUA, por exemplo, já foram implementados sistemas seed-to-sale, um modelo que registra todas as etapas do ciclo de vida da planta de cannabis, garantindo a rastreabilidade e transparência em todo o processo de produção e distribuição.

Nessa mesma linha, uma das últimas alterações do PL 399/2015, que busca viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação, prevê a criação de planos de segurança, com vistas à prevenção de desvios.

Se queremos ver a cannabis regulamentada com qualidade no Brasil, e que essa regulamentação traduza acesso efetivo ao povo brasileiro, precisamos desde já começar a desenhar e debater a forma como queremos que essa regulamentação seja levada a cabo.

Assim como iremos observar nos EUA nos próximos meses, que decidiu reclassificar a cannabis e facilitar seu acesso a nível federal, para que a indústria esteja segura e bem protegida são necessárias uma série de medidas legislativas e administrativas.

A reclassificação da maconha por lá é apenas a primeira de uma série de medidas para garantir que a planta seja acessada pelos pacientes e que o debate efetivo sobre o uso adulto responsável, que já é realidade em dezenas de estados do país, possa se impulsionar já nestas eleições em novembro deste ano.
Aqui, por outro lado, a falta de regulamentação clara dificulta inclusive que mais médicos atuem com essas vias de tratamento, seja em razão da insuficiência de normas do CFM, seja pela dificuldade dos pacientes acessarem tais tratamentos.

O profissional prescritor é peça chave nessa equação do acesso à cannabis medicinal: é seu papel indicar as melhores formas de tratamento e orientar o paciente para que obtenha sucesso com tratamentos canábicos.

A cannabis medicinal veio para ficar, isso é um fato. Finalmente romperam-se as barreiras criadas no último século, que impediam seu estudo científico e uso medicinal. Há ainda, porém, muito ainda a ser feito para que seja garantido o efetivo acesso dessa via de tratamento à população brasileira.


*Murilo Nicolau é advogado especialista em cannabis medicinal.

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