Xenotransplantes e a tentativa de diminuir a fila de órgãos do Sistema Único de Saúde
Xenotransplante é o transplante de órgãos, tecidos ou células de uma espécie animal para um ser humano. Esse método utiliza, quase que exclusivamente, órgãos de porcos geneticamente modificados, que não são rejeitados pelo corpo humano, para oferecer alternativas às longas filas de espera de transplantes tradicionais. Atualmente, 47.328 pacientes aguardam por um órgão no SUS, sendo que a fila renal ocupa mais de 90% dessa demanda. Mas, apesar do grande avanço da ciência nessa tecnologia e da enorme necessidade da população, ainda existem desafios éticos e de biossegurança para a plena implementação dos xenotransplantes.
Ernesto Goulart, professor do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), comenta a respeito do panorama brasileiro da necessidade desses transplantes. “Para o paciente renal crônico sobreviver, deve realizar um procedimento que é chamado de diálise, sendo o mais comumente usado desses a hemodiálise. Atualmente, o Brasil tem aproximadamente 170 mil pacientes realizando procedimentos dialíticos e gasta por volta de R$ 3 bilhões todos os anos com diálise. Isso obviamente também é um custo alto, e por volta de 90% dessas operações são custeadas pelo SUS e são processos recorrentes, ou seja, o paciente tem que ficar de quatro a seis horas com a máquina de hemodiálise, umas três, quatro vezes por semana. Então, é um impacto muito significativo na qualidade de vida do paciente, além dos custos.”
Segundo o professor, o Brasil também tem o maior programa público de transplante de órgãos do mundo. “É uma enorme conquista para o Sistema Único de Saúde. Mais de 95% dos transplantes do País são realizados pelo SUS, o paciente brasileiro não paga nada por esses procedimentos, enquanto que em outros países, como os Estados Unidos, esses processos podem ser muito caros.”

A emergência dos xenotransplantes e dos problemas renais
A insuficiência renal é um problema crescente não só no Brasil, mas em todo o mundo. A ampliação desse fenômeno é decorrente do aumento da diabetes, obesidade e da hipertensão, que impedem que o rim execute sua função apropriadamente. “Apesar de ter ganhado bastante destaque agora devido a esses problemas, há relatos desses transplantes, em diferentes modelos, desde o século 17. A partir do século 21, já existiam alguns animais sendo produzidos com poucas modificações genéticas, até que veio o advento da CRISPR-Cas9, uma ferramenta muito poderosa de engenharia genética, que permite múltiplas edições a um custo muito acessível e com alta eficiência. Nesse momento, teve um ‘boom’ dos xenotransplantes, visto que várias rotas, vias e genes dentro do genoma de um animal, no caso o suíno, poderiam contornar problemas genéticos. Com isso, a eficiência e a segurança avançaram muito em pouco espaço de tempo.”
O porquê da utilização de suínos
A utilização de suínos nos xenotransplantes não é por acaso. Os porcos são animais domesticados há séculos pelos seres humanos, possuindo um ciclo de vida rápido, alcançando o peso necessário entre 60 e 90 dias, além de terem uma anatomia interna dos órgãos compatível também com os humanos. “Para a produção desses animais é necessário primeiro dominar técnicas avançadas em engenharia genética. A partir das modificações realizadas, realiza-se uma clonagem, muito semelhante ao que aconteceu com a Dolly na década de 90, que é um desafio tecnológico muito alto. E, por fim, produzir os animais de fato, processo que tem que ser realizado em estruturas de altíssimo controle de biossegurança para garantir que os órgãos e tecidos desses estejam livres de patógenos, para não representar riscos aos potenciais futuros receptores.”
“Chamamos as estruturas de produção de pig facilities, os quais contam com sistemas tecnológicos muito avançados de purificação de ar, água, ração, monitoramento dos animais e dos cuidadores. Tudo isso para garantir a segurança dos bioprodutos que vão ser gerados ali. Hoje, na USP, temos uma dessas unidades em operação no Instituto de Biologia, a primeira da América Latina, com capacidade de 10 a 15 animais. E, recentemente, em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas, inauguramos uma segunda unidade, agora de produção”, explica Goulart.
Desafios éticos e de biossegurança
Com a rápida evolução, propagação e necessidade dessa tecnologia, surgem desafios e discussões éticas e de biossegurança envolvendo o tema, que devem ser debatidos desde já. “Não devemos deixar esse debate para o futuro, quando isso estiver avançado, é necessário tratar agora e existem várias perspectivas que precisam ser consideradas, sejam elas da sociedade civil, de diferentes religiões ou outras frentes. O debate é muito importante, primeiramente, para educar, já que existe um grande desconhecimento sobre o assunto e, segundamente, para ouvir esses diferentes estratos da sociedade.”
“Também temos que levar em consideração, obviamente, a preocupação do bem-estar do animal, que é um pilar fundamental dessa atividade. Todos os protocolos de manejo de animal devem ser baseados nos melhores e mais exigentes padrões de qualidade internacional, e revisados por especialistas em comportamento animal, de suínos, principalmente”, completa o professor. (Com informações do Jornal da USP)
