Perspectivas para a Saúde Suplementar: a saída é mais saúde
Por Vera Valente
Uma parte importante do mundo já está conseguindo caminhar para uma volta gradual e segura à normalidade. O pós-pandemia começa a ser realidade em países que conseguiram avançar na vacinação. O Brasil, lamentavelmente, continua imerso em situação crítica, ainda com milhares de mortes diárias e com seu sistema de saúde submetido a níveis de estresse nunca antes vistos. Como sair desse fosso terrível em que nos encontramos?
Com mais de um ano de pandemia, a demanda por cuidados e assistência atinge hoje níveis recordes tanto na rede de saúde pública, quanto na privada. A saúde suplementar atravessa, neste momento, seu nível de mais alta utilização na história – em muitos casos, com até 100% de seus recursos mobilizados para atender seus beneficiários.
Os meses iniciais de 2021 têm registrado a confluência de duas fortíssimas pressões de demanda. De um lado, o recrudescimento da Covid-19 – a chamada “segunda onda”, que ora ameaça virar terceira – verificado desde a virada do ano. De outro, a retomada de procedimentos eletivos, não urgentes e não emergenciais, que ficaram represados ao longo do ano passado, seja em função de orientações das autoridades sanitárias, seja por decisão dos próprios indivíduos, com vistas a evitar riscos de contaminação e contágio.
O desafio colocado pela situação que estamos atravessando é tremendo. Implica, em primeiro lugar, manter o sistema funcionando afastado do risco de colapso, continuar cuidando da população e salvando vidas. E impõe, também, a missão de preservar a solidez econômico-financeira de uma rede cada vez mais pressionada por custos em ascensão – não só aqui no Brasil, como em todo o mundo.
A inflação voltou ao foco das autoridades públicas em todo o mundo. De um lado, há desequilíbrios que avultaram com a pandemia. De outro, a retomada das atividades econômicas, sobretudo na China e nos Estados Unidos, está jogando os preços das matérias-primas para as alturas. Na saúde, é ainda pior.
Historicamente, os custos de assistência sobem a ritmo muito mais veloz que os índices gerais de preços. Na média, são três vezes maiores que a inflação corrente. É assim no Brasil, é assim na maior parte do mundo. A pandemia potencializou a alta com fatores como escassez de insumos, concentração de fornecedores globais e explosão de demanda. No nosso caso, a desvalorização do câmbio ainda deu mais uma forcinha extra para os preços.
Algumas evidências ajudam a ilustrar esse quadro. Preços de medicamentos fornecidos a hospitais subiram até 62% no último ano. O custo total por internação em UTI por Covid – que é cerca de duas vezes maior que das demais doenças – aumentou 38% desde abril de 2020, também em função da mudança de perfil etário dos pacientes internados.
Como fazer frente a esse verdadeiro tsunami de custos num sistema já pressionado pela transição demográfica e pela incorporação de tecnologias cada vez mais sofisticadas e, sobretudo, caras? Olhar para o que o resto do mundo já está fazendo pode nos ajudar a encontrar caminhos – uma das raras vantagens do nosso atraso em relação aos demais países no enfrentamento da pandemia.
Entre as respostas está a maior integração entre os sistemas público e privado de saúde, como já prevê a nossa Constituição.
As operadoras de planos e seguros de saúde privadas atendem hoje 48 milhões de brasileiros com coberturas médico-hospitalares. A pandemia fez crescer a procura pela saúde suplementar, depois de praticamente seis anos consecutivos de queda em virtude da recessão e da baixa atividade econômica.
O crescimento dos planos é uma boa notícia. Não só para as empresas. Não só para aqueles que passaram a dispor do atendimento de qualidade ofertado pela rede privada. Mas para todo o sistema de saúde nacional. O Sistema Único de Saúde (SUS) ganha, e muito, quando aqueles que antes só tinham ele a que recorrer agora também podem dispor de outras alternativas, deixando a rede pública para os milhões que só têm essa opção de atendimento.
Destravar esse mercado pode ser uma das grandes lições da pandemia. Está mais que documentado, por seguidas pesquisas de opinião, o desejo da população em ter acesso a planos de saúde. Está mais que clara a intenção das operadoras em expandir o mercado e trazer para dentro dele quem está fora, mas quer entrar. Mesmo a anemia econômica e a maior informalidade nas relações de trabalho não são impeditivos, como os 1,3 milhão de novos beneficiários da saúde suplementar desde junho comprovam. Aqui, aliás, há uma avenida a explorar.
Temos no país 94 milhões de pessoas contratadas, sob as mais diversas formas, regimes e vínculos. Mas os titulares de planos coletivos (que respondem por 80% dos contratos) são apenas pouco mais de 20 milhões. Em tempos de práticas ESG, nada mais inclusivo e socialmente responsável do que as nossas empresas oferecerem mais planos de saúde a seus funcionários.
Também precisamos avançar numa transformação estrutural destinada a dar mais racionalidade aos sistemas de saúde: a necessária adoção de novos modelos de remuneração dos prestadores. O modelo mais praticado em todo o mundo, e também no Brasil, é o chamado fee for service. Mas a experiência acumulada em muitos anos demonstra objetivamente que ele é ruim porque estimula procedimentos dispendiosos, nem sempre mais eficientes para os pacientes.
Precisamos caminhar para um modelo que promova a medicina baseada em evidências, na entrega de mais valor (‘value-based’), mais eficaz para se conseguir desfechos clínicos e resultados mais positivos para os pacientes. Com isso, toda a cadeia de prestadores de serviços – médicos, hospitais, indústria farmacêutica – terá que mudar o foco de quantidade de procedimentos para qualidade, ao contrário do que acontece hoje.
A expansão da oferta de planos, com a concomitante racionalização de gastos que pode advir da maior integração com o SUS, tem capacidade de ampliar o acesso dos brasileiros à assistência e, ao mesmo tempo, contribuir para atenuar a espiral ascendente dos custos que ameaça alijar ainda mais pessoas das redes de atendimento. Numa crise de tamanhas proporções, a única saída é mais saúde.
*Vera Valente é diretora executiva da FenaSaúde.