A uberização jurídica das startups de saúde e o risco regulatório
Nos corredores bem iluminados da inovação tecnológica, poucas promessas soaram tão sedutoras quanto a digitalização da saúde. Plataformas que conectam médicos e pacientes por meio de interfaces intuitivas, atendimento a um clique, preços acessíveis e diagnósticos em tempo real — tudo embalado com vocabulário futurista e slogans que juram democratizar o cuidado médico. Seria, ao que parece, o triunfo definitivo da tecnologia sobre as ineficiências do modelo tradicional. Mas enquanto o discurso avança em velocidade 5G, a legislação, os códigos profissionais e, principalmente, as responsabilidades jurídicas parecem estar presas na conexão discada.
O modelo de negócios de muitas startups de saúde tem seguido a trilha já percorrida por outras plataformas digitais: atuar como intermediárias tecnológicas, e não como prestadoras diretas dos serviços oferecidos. Em teoria, trata-se apenas de aproximar oferta e demanda — um marketplace da medicina, no qual o paciente é cliente e o médico, fornecedor independente. Mas, como ocorre com frequência no universo das “disrupções”, a realidade operacional não é tão neutra quanto o discurso corporativo faz parecer. Ocorre que, diferente de motoristas e entregadores, médicos não operam em zonas cinzentas normativas. Sua atuação está submetida a um conjunto robusto de obrigações legais, éticas e técnicas — cuja flexibilização não é tão simples quanto ajustar um algoritmo.
Na prática, o que se vê é um deslocamento quase imperceptível — e nem por isso irrelevante — da responsabilidade regulatória: as plataformas ganham espaço, escalam rápido e capturam valor, mas repassam os riscos para a ponta do sistema — os profissionais de saúde. Em contratos muitas vezes padronizados, genéricos e assinados digitalmente com dois cliques, o médico se compromete a seguir diretrizes operacionais da empresa, cumprir metas de atendimento e submeter-se a avaliações públicas de desempenho, mas também assume integralmente a responsabilidade por qualquer intercorrência clínica, vazamento de dados ou descumprimento regulatório. É como se o piloto de um avião comercial fosse o único responsável por uma falha de software no sistema de bordo — ainda que jamais tenha tido acesso ao seu código-fonte.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e alguns Ministérios Públicos estaduais começaram a lançar luz sobre essas assimetrias. Em decisões recentes, a agência deixou claro que plataformas que ofertam serviços médicos ou intermedeiam atendimentos clínicos não podem alegar mera neutralidade tecnológica. Se organizam, promovem e lucram com a prestação de cuidados à saúde, devem se submeter às exigências normativas que regulam estabelecimentos assistenciais — como a necessidade de registro sanitário, direção técnica e conformidade com normas de biossegurança e prontuário eletrônico. O argumento da neutralidade algorítmica, embora atraente, tem se mostrado insuficiente para isentar tais plataformas das obrigações previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
As implicações desse movimento são múltiplas. Do ponto de vista da responsabilidade civil, por exemplo, começa a ganhar espaço a tese de que empresas que intermedeiam, controlam e padronizam serviços médicos deveriam responder solidariamente por danos decorrentes de falhas assistenciais. Afinal, se a plataforma define o valor da consulta, o tempo disponível por atendimento e até impõe protocolos clínicos padronizados, não se pode pretender que o profissional atue com total autonomia — e, ainda assim, assuma sozinho todo o risco. A lógica de mercado não pode substituir, por conveniência, a lógica do Direito.
No campo da ética médica, o problema se torna ainda mais delicado. O Código de Ética Médica estabelece que o profissional não pode aceitar imposições comerciais que comprometam seu julgamento clínico, tampouco pode submeter-se a avaliações públicas que afetem sua reputação sem o devido contexto técnico. Plataformas que classificam médicos com base em “estrelas”, tempo de resposta ou quantidade de atendimentos por hora podem estar, ainda que involuntariamente, induzindo a uma prática médica inadequada — mais voltada à performance algorítmica do que ao cuidado individualizado. A ética, vale lembrar, não é um ativo intangível para fins de valuation; é um pilar estrutural da medicina enquanto ciência e profissão.
E há ainda o campo sensível da proteção de dados. A LGPD — que muitos ainda tratam como uma sigla exótica — impõe obrigações rigorosas para o tratamento de dados sensíveis, especialmente os de saúde. As plataformas, como controladoras ou operadoras desses dados, devem garantir não apenas a segurança técnica das informações, mas também a legalidade de seu tratamento. E aqui, mais uma vez, o modelo de negócios entra em tensão com o modelo legal. Muitos médicos são induzidos a assinar termos de responsabilidade que os tornam, formalmente, responsáveis pela guarda e integridade dos dados — mesmo que todo o tratamento ocorra em servidores controlados pela empresa. Quando ocorre um incidente de segurança — como já se viu em alguns casos notórios — é o nome do profissional que aparece no radar das autoridades, não o do servidor terceirizado ou do investidor-anjo da startup.
É importante, contudo, evitar o reducionismo fácil. Não se trata de demonizar as plataformas ou de defender um retorno nostálgico ao consultório de portas de madeira e fichas de papel. A tecnologia tem papel fundamental na ampliação do acesso à saúde, especialmente em um país de dimensões continentais e gargalos crônicos como o Brasil. A telemedicina, por exemplo, demonstrou seu valor durante a pandemia e segue sendo uma ferramenta estratégica para o SUS e para o setor privado. O que está em jogo, portanto, não é a legitimidade da inovação, mas a coerência jurídica do seu modelo de funcionamento.
Modelos híbridos, que equilibram inovação com responsabilidade, são possíveis — e já existem. Algumas plataformas mais maduras adotam estruturas contratuais mais equilibradas, com divisão clara de responsabilidades, comitês técnicos próprios, adesão a códigos de conduta setoriais e canais internos de denúncia. Outras vão além, registrando-se como clínicas digitais, assumindo responsabilidade sanitária e garantindo que os médicos tenham real autonomia clínica. São iniciativas que demonstram que é possível conciliar tecnologia com responsabilidade institucional — sem jogar o profissional à própria sorte nem transformar o paciente em consumidor vulnerável de um serviço automatizado.
No exterior, o debate já ganhou contornos regulatórios mais avançados. A União Europeia, por meio do GDPR e de regulamentações setoriais específicas, tem imposto obrigações expressas às healthtechs, incluindo requisitos de interoperabilidade, registro de software como dispositivo médico e prestação de contas em caso de erro assistencial. Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA) já regula algoritmos de apoio à decisão clínica como dispositivos sujeitos a registro e validação. A lógica subjacente a essas iniciativas é simples, embora ainda contraintuitiva para muitos empreendedores: com poder, vem responsabilidade.
O Brasil, nesse sentido, ainda engatinha — mas o caminho já está sendo traçado. A recente proposta de revisão das normas sobre telessaúde pela ANVISA e pelo CFM, além das decisões judiciais que começam a reconhecer a corresponsabilidade das plataformas, indicam uma direção. É preciso, porém, que esse avanço seja acompanhado por uma atuação mais proativa dos órgãos de classe, das entidades de proteção ao consumidor e, sobretudo, dos próprios profissionais. A resistência à precarização não precisa ser barulhenta — mas deve ser informada, articulada e juridicamente consciente.
A relação entre tecnologia e Direito sempre será marcada por um certo descompasso. A inovação corre, o regulador caminha. Mas há momentos em que é preciso acelerar o passo. A uberização jurídica das startups de saúde não é apenas um problema corporativo; é uma questão de política pública, de proteção da dignidade profissional e, acima de tudo, de preservação da confiança social na medicina. Quando o paciente acredita que está sendo atendido por uma empresa — e não por um profissional responsável — algo se rompe no pacto de cuidado que sustenta toda prática assistencial.
Em última análise, o que está em jogo é a arquitetura moral da medicina em tempos digitais. Se permitirmos que a lógica de intermediação digital desresponsabilizada se naturalize, corremos o risco de transformar o médico em prestador de serviço sob demanda, a clínica em central de atendimento e a saúde em um menu de opções gamificadas. Mas nem todo avanço é progresso. E, às vezes, a verdadeira inovação é lembrar que certos valores — como responsabilidade, ética e respeito à autonomia profissional — não podem ser substituídos por linhas de código.
*Lucia Regina P. Moioli é advogada, L.LM pela Cornell Law School, head da área de M&A do Chodraui & Hohl Advogados, professora universitária, palestrante e escritora.