A força da transdisciplinaridade no tratamento do câncer
Minha experiência de 40 anos na oncologia me ensinou que não basta tratar a doença; é preciso olhar para o paciente como um todo. Foi essa a base para a criação, há uma década, do Instituto Mais Identidade, um projeto que nasceu do entendimento de que a luta contra o câncer não se restringe ao tumor, mas envolve a preservação da identidade e da dignidade de quem o enfrenta. A técnica e a tecnologia são fundamentais, mas não suficientes: só com um esforço transdisciplinar é possível devolver qualidade de vida plena a quem passa por esse desafio.
Um dos maiores entraves continua sendo o diagnóstico precoce. O câncer de cabeça e pescoço, por exemplo, muitas vezes pode ser identificado por exames simples ou até mesmo por um olhar atento do dentista ou médico. Feridas que não cicatrizam, manchas e alterações visíveis são sinais de alerta que, se reconhecidos a tempo, podem salvar vidas. No entanto, apenas 15% dos casos são detectados em estágio inicial e, quando falamos de lesões em áreas de difícil visualização, como a língua, esse índice cai para menos de 5%. Esse dado escancara a falta de conhecimento, tanto entre profissionais de saúde quanto entre a população. Informar sobre fatores de risco como cigarro, álcool, exposição ao sol e ao HPV, é tão importante quanto capacitar médicos e dentistas para identificar suspeitas.
Mas o desafio não se encerra no diagnóstico. O tratamento só é realmente eficaz quando conduzido de forma transdisciplinar. Historicamente, o processo era conduzido por um único especialista, muitas vezes o cirurgião, que, após a operação, encaminhava o paciente para outros profissionais, de acordo com as necessidades do tratamento. Esse modelo fragmentado não atende às demandas complexas dessa jornada. No Mais Identidade, acreditamos em uma prática que integra, desde o início, cirurgiões, oncologistas, dentistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros profissionais. Não se trata de “chamar especialistas”, mas de criar um processo único, no qual a reabilitação não é um passo posterior, e sim parte intrínseca do tratamento.
Reabilitar é tratar. E tratar é também pensar no depois: como o paciente vai se alimentar, falar, enxergar, sentir cheiros e, sobretudo, se relacionar socialmente sem perder a autoestima. A cura não pode ser medida apenas pela eliminação da doença, mas pela capacidade de o indivíduo retomar sua vida com dignidade. Por isso, insistimos que a reabilitação deve estar presente no planejamento inicial, caso contrário, corre o risco de se tornar inviável.
A medicina avançou muito nos últimos 50 anos. Mas talvez o maior progresso não esteja nas técnicas ou nos equipamentos, e sim na mudança de perspectiva: entender que o paciente é uma pessoa, com direitos, necessidades emocionais e sociais, e não apenas um corpo adoecido. Essa visão é a essência do trabalho que desenvolvemos no Instituto Mais Identidade, uma organização sem fins lucrativos que oferece reabilitação gratuita a pessoas com deformidades faciais em situação de vulnerabilidade. Com uma equipe de 30 especialistas, aliamos tecnologia 3D, excelência técnica e acolhimento humano para devolver funções, autoestima e reinserção social.
Qualidade de vida não é luxo. É parte essencial da cura e um direito humano básico. E é isso que a transdisciplinaridade nos ensina: cuidar da vida em toda a sua plenitude, antes, durante e depois do câncer.
*Luciano Dib é Professor Titular da Faculdade de Odontologia da UNIP e fundador do Instituto Mais Identidade.