Sustentabilidade de entidades de saúde depende do poder público

Por Lídia Valério Marzagão e Raphael de Matos Cardoso

Os hospitais são organizações complexas que realizam essencialmente atividades de assistência à saúde e que necessitam de uma diversidade de profissionais especializados: médicos, enfermeiros, técnicos de diferentes áreas, entre outros importantes para o andamento da rotina hospitalar, complementada por recursos materiais, medicamentos e insumos, os quais refletem-se diretamente nos resultados.

Diante dessa perspectiva, os recursos financeiros são fundamentais para que as atividades desses complexos sejam realizadas. A escassez ameaça a execução das atividades e torna-a inviável, considerando que há comprometimento das compras (materiais, medicamentos e insumos), da contratação e manutenção de recursos humanos, da gestão de qualidade, o que culmina num atendimento insuficiente ou na solução de continuidade do atendimento.

Para melhorar o nível de eficiência das unidades de saúde pública por meio de desempenho significativamente mais satisfatório em comparação com os serviços hospitalares da administração direta é que surgiu o modelo de governança hospitalar com a colaboração das instituições privadas, com a implementação de técnicas modernas de governança e práticas de melhoria de qualidade que tornam esses centros de excelência na administração hospitalar.

Somente pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos podem ser qualificadas pelo Poder Executivo como organizações sociais (uma das formas de colaboração, dentre outras), e raramente são dotadas de patrimônio e recursos suficientes para arcar com eventuais prejuízos ou passivos financeiros inerentes ao exercício das atividades públicas executadas. Sob esse modelo alternativo de governança, o poder público transfere recursos financeiros para a cobertura dos custos dos hospitais, mas a responsabilidade por seu gerenciamento e pela gestão de pessoas, de materiais e verbas são delegadas.

É fato notório que tais instituições filantrópicas certificadas recebem, no mais das vezes, uma bomba relógio no ato da assinatura dos módulos convencionais (contratos de gestão, convênios e termos diversos).

Esses contratos, aqui designados como gênero, têm modelagens e lógicas diferentes dos demais acordos celebrados pela administração pública, na medida em que neles não há previsão de remuneração, tampouco qualquer outra contrapartida financeira às associações e fundações que devem manejar os recursos e estrutura recebidos unicamente para o desenvolvimento das atividades definidas nos planos de trabalho. Não é possível imaginar sua execução senão em ambiente de corresponsabilidade.

Fato curioso e completamente singular é que a partir da referida lógica simplificada, digna de estudos históricos, vez que remonta os idos de 1998, o modelo implica em outras (ir)racionalidades diversas dos demais contratos: o poder público é sempre quem detém o ativo da relação, enquanto todo o passivo financeiro e judicial é registrado em nome da associação ou da fundação enquanto gestora nos equipamentos de saúde.

O arcabouço legislativo que disciplina mencionados módulos não dispõe de solução para as questões financeiras no pós contrato, em que pese projetos de lei em adormecida tramitação na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) contenham algumas disposições para tentar resolver o problema, à exemplo. Essa omissão assola as gestões, haja vista as corriqueiras ausências dos repasses mensais que levam algumas associações a buscarem recursos de terceiros, com o objetivo de evitar paralisações nos atendimentos. A ausência de reposições posteriores gera graves déficits e dívidas em nome próprio da entidade privada.

Além disso, não é raro a associação ou fundação ser acusada de má-gestão ou de má pagadora, pelo simples fato de carregar passivo que na maioria das vezes é natural e inerente às atividades, o qual existiria mesmo que o serviço fosse executado diretamente pelo poder público. Vale dizer que a acusação de má-gestão está atrelada simploriamente à existência de passivo ou de empréstimos para fazer frente à inadimplência do poder público ou a insuficiência dos repasses. Ignora-se a responsabilidade do Estado e se transfere todo o risco da atividade para a organização da sociedade civil, sem nenhuma remuneração a ela ou qualquer outra solução para o tratamento do passivo.

Mais perniciosa é a situação no término do contrato, quando todo o passivo continua em nome e sob a responsabilidade da organização da sociedade civil, que não receberá mais recursos financeiros do poder público contratante para honrar os pagamentos de despesas contraídas para a execução da atividade desempenhada exclusivamente em benefício da administração pública e dos usuários do serviço.

Lamentavelmente os governantes que deixam de realizar os repasses não sofrem nenhuma reprimenda, tampouco recaem sobre eles as consequências jurídicas ou políticas pelo simples fato de que contra o CNPJ do hospital público raramente será deduzida alguma demanda referente ao período em que esteve sob administração da associação ou fundação, pois todos os passivos financeiros e judiciais seguirão sob nome, CNPJ e responsabilidade da organização da sociedade civil, sem nenhuma perspectiva de recebimento ou quitação, sequer no Poder Judiciário.

Tal situação tem afetado a sustentabilidade das associações e fundações, que passam a peregrinar na busca de suporte econômico para cumprir compromissos que deveriam ser honrados pelo poder público que as contratou, em prejuízo e comprometimento das importantes atividades sociais desenvolvidas por elas, bem como em dispêndio de energia que poderia ser canalizada para o aprimoramento e ampliação da atuação desses importantes componentes do terceiro setor, fundamentais para o apoio do Estado de bem-estar social.

Digno de nota também é o fato de que nas seleções públicas em que a associação se candidata tal passivo financeiro que ela carrega consigo tem sido motivo de desclassificação, independentemente de discussões jurídicas que vão se arrastando e permeando a justiça.

Urge que as associações e fundações recebam tratamento com a devida responsabilidade social, quiçá mediante adequação legislativa, e que não lhes seja imputado o vultoso passivo inerente aos riscos da atividade/serviço público, os quais não podem ser transferidos à associação e à fundação, que estão apenas transitoriamente à frente dos serviços controlados e dirigidos pelo poder público, o único responsável pelo financiamento integral da atividade de sua titularidade.


*Lídia Valério Marzagão, sócia-gestora do Marzagão e Balaró Advogados, especialista em terceiro setor na área da saúde.

*Raphael de Matos Cardoso, sócio do Marzagão e Balaró Advogados e especialista em direito administrativo.

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