O fim da substituição tributária de medicamentos em São Paulo
Por Amanda Gazzaniga, Kelly Lima e Ligia Faria

A substituição tributária consiste na atribuição legal de responsabilidade pelo recolhimento do imposto a um contribuinte que, embora não realize diretamente o fato gerador, passa a responder por ele em nome dos demais integrantes da cadeia. No caso do ICMS, a modalidade mais disseminada é a substituição tributária progressiva, ou “para frente”, em que o responsável — geralmente o fabricante ou o importador — antecipa o pagamento do imposto relativo às operações subsequentes, calculado com base em parâmetros presumidos de preço e de circulação futura das mercadorias.
Com a edição da Portaria SRE nº 64/2025, publicada em 1º de outubro de 2025, o Estado de São Paulo determinou o fim da sistemática de substituição tributária para os medicamentos a partir de 1º de janeiro de 2026. A medida marca uma mudança estrutural na forma de apuração do ICMS do setor, que deixará de concentrar o recolhimento do imposto na indústria e no importador, passando a exigir o débito e crédito em cada etapa da cadeia comercial.

Essa alteração tende a gerar reflexos relevantes para toda a cadeia farmacêutica, exigindo revisões de precificação, ajustes nos sistemas fiscais, reorganização de fluxos de caixa e atenção à transição de estoques, especialmente quanto ao aproveitamento dos créditos do ICMS-ST já recolhido. Trata-se de uma mudança de grande alcance, cujos efeitos tributários e operacionais deverão demandar planejamento e adaptação gradual das empresas envolvidas em todas as etapas da cadeia.
Nesse contexto, importante mencionar que o Estado de São Paulo também editou a Portaria SRE nº 65/2025 — que alterou a Portaria CAT nº 28/2020 — introduzindo ajustes importantes nas regras de creditamento, regulamentando que os valores de ICMS-ST incidentes sobre os estoques existentes em 31 de dezembro de 2025 sejam apropriados de forma fracionada em até 24 parcelas mensais, em substituição ao prazo de 12 meses anteriormente previsto.

Para que o contribuinte tenha direito a esse crédito, é essencial a realização de um levantamento detalhado do estoque existente na data da transição, uma vez que o valor correspondente deverá ser apurado por meio de relatório minucioso, contendo, para cada item em estoque, as informações exigidas pela Portaria CAT citada.
Esse relatório deverá incluir, entre outros elementos, as notas fiscais de entrada mais recentes (suficientes para comportar a quantidade em estoque), além de dados como NCM, CEST, base de cálculo da substituição tributária, alíquota aplicável, valor do crédito e memória de cálculo.
Na EFD-ICMS/IPI, o levantamento de estoque deve ser informado no Bloco H, que reúne os dados sobre a mudança de forma de tributação das mercadorias e demais informações necessárias para cálculo e controle do crédito de ICMS a ser apropriado.
Esse detalhamento eleva o grau de complexidade, uma vez que demanda conciliação precisa entre os arquivos XML de entrada e inventário declarado. Qualquer divergência entre essas bases pode colocar em risco a rastreabilidade do crédito e ensejar questionamentos em eventual fiscalização. Além disso, deve-se manter à disposição do fisco, pelo prazo de 5 (cinco) anos, conforme estabelecido no art. 202 do RICMS/SP, o relatório digital com memória de cálculo.
Essa dilatação no aproveitamento dos créditos, contudo, tende a agravar os impactos financeiros da transição, especialmente para distribuidores e varejistas, que passam a recolher o ICMS sobre as saídas de medicamentos a partir de 2026, sem a contrapartida imediata do crédito integral relativo aos estoques já tributados sob o regime da substituição. O descompasso temporal entre o débito das novas operações e o crédito parcelado em 24 meses pode gerar pressão sobre o fluxo de caixa e onerar o capital de giro dessas empresas, que precisarão absorver temporariamente esse custo até a compensação total dos valores. Trata-se, portanto, de um ponto sensível da transição, que exigirá planejamento financeiro e acompanhamento contábil rigoroso para mitigar eventuais distorções e impactos sobre a precificação.
Outro ponto de destaque dessa alteração normativa diz respeito à abrangência das operações que deixam de se submeter à substituição tributária. Surge, então, a dúvida prática: a revogação do regime aplica-se apenas às operações internas ou também às interestaduais?
Nos termos do artigo 9º, §1º, da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), cabe à unidade federada de destino definir as mercadorias sujeitas à substituição tributária, bem como estabelecer as respectivas bases de cálculo, alíquotas e condições de aplicação. Assim, as operações com medicamentos destinadas ao Estado de São Paulo deixarão de estar submetidas ao regime de substituição tributária a partir de 1º de janeiro de 2026.
Por outro lado, nas operações originadas em território paulista e destinadas a outros Estados, os contribuintes deverão observar a existência de Convênios ou Protocolos firmados entre São Paulo e as demais unidades federadas. Nessas hipóteses, enquanto tais instrumentos permanecerem vigentes, a substituição tributária continuará a ser aplicada nas operações interestaduais abrangidas pelos respectivos acordos.
O encerramento da substituição tributária de medicamentos em São Paulo representa um passo relevante na modernização da sistemática de arrecadação do ICMS no setor. A transição para o regime de apuração direta do imposto em cada etapa da cadeia exigirá planejamento, integração tecnológica e alinhamento entre as áreas fiscal, contábil e comercial das empresas, de modo a assegurar o correto cumprimento das obrigações acessórias e a neutralidade dos impactos financeiros.
Embora o processo envolva desafios operacionais, a mudança também pode favorecer maior transparência e aderência das operações à realidade das transações comerciais, reforçando a importância de uma gestão tributária preventiva e estruturada.
Esse movimento ocorre em um momento em que o país se prepara para a implementação da Reforma Tributária sobre o consumo, que deverá substituir o ICMS por um novo modelo de tributação compartilhada. Assim, a experiência paulista antecipa ajustes que poderão orientar a adaptação das empresas à futura dinâmica do sistema tributário nacional.
*Amanda Gazzaniga é Sócia no ButtiniMoraes. Kelly Lima é Diretora de tax na BMTax. Ligia Faria é Advogada no ButtiniMoraes.
