Correção de Dívidas pela Selic: os impactos em Glosas Hospitalares
No dia 15 de outubro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão unânime que redefine o cenário das obrigações civis no Brasil. O julgamento do Recurso Especial nº 2.199.164/PR, sob relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, fixou tese vinculante no Tema 1.368 dos recursos repetitivos. A taxa Selic passa a ser o índice obrigatório para juros de mora e correção monetária em dívidas civis.
O aspecto mais relevante da decisão é sua aplicação retroativa. A regra vale inclusive para processos iniciados antes da Lei 14.905/2024, que havia estabelecido a Selic como índice para atualização de débitos civis, mas deixou dúvidas sobre sua aplicação a processos anteriores. A decisão do STJ encerra essa discussão ao afirmar que se trata de interpretação do art. 406 do Código Civil, norma já vigente desde 2002. Encerra-se, assim, uma disputa jurídica de mais de vinte anos.
A afetação ao rito dos recursos repetitivos decorreu da multiplicidade de processos versando sobre o tema e das decisões contraditórias em tribunais estaduais, gerando insegurança especialmente para o setor de saúde, onde litígios sobre glosas hospitalares e inadimplemento contratual movimentam bilhões de reais anualmente.
O Cenário Antes da Decisão no Setor de Saúde
Até então, o Brasil vivia um verdadeiro mosaico de critérios de correção. Um hospital que obteve sentença favorável em 2020 para receber indenização por inadimplemento de contrato de credenciamento com operadora de plano de saúde; o Tribunal de Justiça de São Paulo aplicava IPCA-E mais juros de 1% ao mês. No Paraná, outro tribunal utilizava IGP-M mais a mesma taxa de juros. No Rio Grande do Sul, alguns juízes já adotavam a Selic.
Essa fragmentação gerava insegurança jurídica e dificultava o planejamento financeiro. Hospitais com credenciamento em múltiplas operadoras e disputas em diferentes estados não sabiam quanto efetivamente receberiam. Operadoras não conseguiam calcular com precisão suas obrigações. O mercado de antecipação de recebíveis de glosas judicializadas operava com deságios elevados devido à imprevisibilidade.
O Que Muda com a Decisão
A partir de agora, a uniformização é a regra. A Selic, taxa básica da economia brasileira, torna-se o padrão nacional. A Selic já incorpora correção monetária e juros, evitando-se a cumulação de índices distintos.
Para ilustrar: se uma dívida de R$ 100.000,00 referente a glosas não pagas por operadora está em discussão judicial desde 2022, a atualização será feita exclusivamente pela Selic acumulada no período. Não há mais espaço para discussões sobre qual índice de inflação aplicar ou qual percentual de juros somar. A simplificação é evidente.
Economicamente, a decisão se justifica. O STJ argumenta que permitir remuneração superior à Selic nas relações civis criaria uma distorção. Os próprios bancos, ao captar e emprestar recursos para financiamento de hospitais e clínicas, estão vinculados a essa taxa. Um credor civil não pode ter direito a rendimento maior do que o sistema financeiro oferece. Isso violaria a lógica macroeconômica e criaria incentivos perversos. A decisão promove, assim, harmonia entre as obrigações públicas e privadas.
Quando a Decisão NÃO se Aplica no Setor de Saúde
Aqui reside o ponto crucial que gestores de faturamento, áreas jurídicas e de auditoria de contas devem compreender. A decisão do STJ respeita dois pilares fundamentais do direito: a coisa julgada e a autonomia da vontade.
Primeiro, se o título judicial já transitou em julgado com previsão de outro índice de correção, ele prevalece. Exemplo prático: um hospital obteve sentença definitiva em 2023 determinando correção pelo IPCA mais juros de 1% ao mês em ação sobre glosas de operadora. Essa decisão não será alterada. A coisa julgada é intangível. A nova tese do STJ não tem efeito rescisório. Ela se aplica apenas a processos em curso, sem decisão definitiva.
Segundo, e igualmente importante, quando o próprio contrato de credenciamento entre hospital e operadora estabelece juros e correção monetária, prevalece o pactuado. O princípio do pacta sunt servanda permanece intocado. Se um contrato de credenciamento prevê que, em caso de inadimplemento, haverá correção pelo IPCA-Saúde e juros de 2% ao mês, essa cláusula será respeitada. A decisão do STJ incide apenas quando não há convenção entre as partes. O artigo 406 do Código Civil é claro: aplica-se a taxa legal “quando os juros moratórios não forem convencionados”. A autonomia privada é preservada. Isso é fundamental para contratos de credenciamento, fornecimento de materiais médico-hospitalares e prestação de serviços médicos que preveem índices específicos.
Quadro Resumo: Aplicação da Decisão no Setor de Saúde
Impactos Práticos para Instituições de Saúde
Gestão de Faturamento e Glosas
As áreas de faturamento e auditoria de contas médicas de hospitais e operadoras ganham previsibilidade significativa. Provisões contábeis para glosas judicializadas tornam-se mais precisas. A Selic é uma taxa pública, de fácil acesso e acompanhamento. Não há mais necessidade de consultar múltiplos índices ou interpretar jurisprudências divergentes. A gestão de risco melhora significativamente. Projeções de recebimentos de créditos judicializados ganham previsibilidade, facilitando o planejamento de desembolsos com fornecedores, folha de pagamento e investimentos em equipamentos.
Mercado de Antecipação de Recebíveis
A padronização pode fomentar negociações no mercado de antecipação de recebíveis de saúde. Bancos e factorings especializados em healthcare que descontam recebíveis judicializados terão mais segurança para precificar ativos. O deságio tende a diminuir. Isso beneficia especialmente hospitais filantrópicos e de pequeno porte que desejam antecipar créditos em litígio para manter o fluxo de caixa e continuar operando.
A Questão da Inflação Médica
Contudo, há um ponto de atenção crítico. A Selic é volátil e pode não refletir adequadamente a inflação médica, que historicamente supera a inflação geral. O IPCA-Saúde, subíndice do IPCA que capta variação de preços de medicamentos, planos de saúde e serviços médicos, frequentemente apresenta variação superior à inflação geral e à própria Selic.
Entre 2020 e 2024, por exemplo, enquanto o IPCA geral acumulou aproximadamente 28%, o IPCA-Saúde registrou variação próxima a 35%, uma diferença de 7 pontos percentuais. Medicamentos oncológicos importados chegaram a ter reajustes de 50% a 80% no período devido à variação cambial e à concentração de mercado. Para um hospital com glosa judicializada de R$ 1 milhão em 2020, essa diferença entre índices representaria aproximadamente R$ 70.000,00 a menos no valor atualizado.
A questão é ainda mais sensível considerando que o setor de saúde opera com margens estreitas. Hospitais privados no Brasil trabalham com margens operacionais médias de 3% a 8%, segundo dados da ANAHP (Associação Nacional de Hospitais Privados). Uma correção que não reflita adequadamente a inflação de custos pode comprometer seriamente a sustentabilidade financeira da instituição.
O próprio acórdão prevê uma válvula de escape: o artigo 404 do Código Civil permite ao juiz conceder indenização suplementar se os juros não cobrirem o prejuízo. Essa ressalva, porém, pode gerar nova onda de litígios. Hospitais podem pleitear indenização adicional demonstrando que a Selic não cobriu a inflação real de custos operacionais, mediante planilhas detalhadas de composição de custos, cotações de medicamentos, materiais médicos e evolução de despesas com pessoal. A discussão se desloca do índice de correção para a suficiência da indenização.
Glosas Hospitalares: Uma Relação Complexa
As glosas hospitalares merecem análise específica. Glosas são contestações feitas por operadoras de planos de saúde sobre procedimentos, materiais ou medicamentos cobrados por hospitais e clínicas. Dividem-se em glosas técnicas (relacionadas à adequação do procedimento) e administrativas (relacionadas a falhas documentais ou contratuais).
O volume de glosas no Brasil é expressivo. Estima-se que entre 10% e 20% do faturamento hospitalar seja glosado pelas operadoras, gerando litígios que podem se estender por anos. A decisão do STJ impacta diretamente essa dinâmica:
Para hospitais: Glosas judicializadas que não tenham previsão contratual específica de índice de correção serão atualizadas pela Selic. Isso pode reduzir o valor efetivamente recebido em comparação com índices setoriais como IPCA-Saúde, que refletem melhor a inflação médica.
Para operadoras: A previsibilidade trazida pela uniformização facilita a provisão de passivos e a gestão de sinistralidade. Operadoras podem precificar com mais precisão o custo de manter glosas em discussão judicial.
Recomendação estratégica: Ambas as partes devem considerar revisão de contratos de credenciamento para incluir cláusulas claras sobre índices de correção em caso de inadimplemento ou glosas judicializadas. A especificação contratual de IPCA-Saúde ou outro índice setorial pode beneficiar hospitais, enquanto a Selic pode ser mais vantajosa para operadoras em cenários de juros elevados.
Contratos de Credenciamento e Fornecimento
Contratos de credenciamento entre hospitais e operadoras são a espinha dorsal do sistema de saúde suplementar brasileiro. A decisão do STJ torna ainda mais importante a redação cuidadosa desses instrumentos.
Cláusulas essenciais a incluir ou revisar:
- Índice de correção monetária específico: Definir se será IPCA, IPCA-Saúde, IGP-M ou outro índice
- Taxa de juros moratórios: Especificar percentual (1% ou 2% ao mês são comuns)
- Prazo para pagamento: Quanto mais claro, menor a chance de litígio
- Critérios de glosa: Definir procedimentos administrativos prévios à judicialização
- Foro e arbitragem: Considerar cláusulas de mediação ou arbitragem para resolver disputas
Contratos de fornecimento de medicamentos e materiais médico-hospitalares também devem receber atenção especial. Fornecedores frequentemente enfrentam inadimplência de hospitais. Contratos que especifiquem índices de correção adequados protegem ambas as partes.
SUS e Saúde Pública
Um esclarecimento fundamental: a decisão do STJ aplica-se a relações civis entre particulares. Débitos relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo repasses federais, estaduais e municipais a hospitais filantrópicos e conveniados, seguem regras próprias de direito público.
Precatórios e requisições de pequeno valor (RPVs) relacionados a serviços prestados ao SUS têm sistemática específica de correção, estabelecida pela legislação de direito financeiro e pela jurisprudência do STF sobre precatórios. A decisão não altera essa dinâmica.
Contudo, contratos de gestão com Organizações Sociais (OSs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), quando configurarem relações civis e não administrativas típicas, podem ser impactados pela decisão caso não prevejam índices específicos.
Medicina Diagnóstica e Laboratórios
Laboratórios de análises clínicas e clínicas de diagnóstico por imagem frequentemente enfrentam disputas sobre pagamento de exames. A relação entre esses prestadores e operadoras de planos de saúde também é alcançada pela decisão.
Contratos de prestação de serviços diagnósticos que não especifiquem índices de correção para inadimplemento seguirão a Selic em litígios judiciais. Considerando que exames laboratoriais têm custos significativos de insumos (reagentes, muitos importados) e equipamentos (manutenção em dólar), a Selic pode não refletir adequadamente a inflação de custos do setor.
Home Care e Atendimento Domiciliar
O segmento de home care, em franca expansão no Brasil, também merece atenção. Contratos de atendimento domiciliar prolongado envolvem valores expressivos e frequentemente geram disputas entre prestadores, operadoras e famílias.
A natureza contínua desses serviços (muitas vezes por anos) e a complexidade das despesas envolvidas (equipes multidisciplinares, equipamentos, medicamentos) tornam especialmente importante a previsão contratual clara de índices de reajuste e correção em caso de inadimplemento.
A Questão da Retroatividade e Provisões Contábeis
A aplicação retroativa tem impacto direto nas demonstrações financeiras de hospitais e operadoras. Contratos de credenciamento frequentemente se estendem por 3 a 5 anos, e litígios sobre glosas podem tramitar por períodos similares ou superiores.
Para hospitais: É necessário reavaliar provisões de créditos a receber de glosas judicializadas. Se a expectativa era receber correção por IPCA-Saúde mas a Selic será aplicada, pode haver redução do ativo esperado.
Para operadoras: Provisões técnicas de sinistros a liquidar (IBNR – Incurred But Not Reported) e passivos judiciais devem ser recalculados. A uniformização pela Selic pode reduzir provisões se anteriormente se consideravam índices mais elevados.
Impacto em auditoria: Auditores independentes devem revisar a adequação das provisões à luz da nova jurisprudência. A aplicação retroativa pode exigir ajustes em demonstrações de exercícios anteriores se os efeitos forem materialmente relevantes.
A Questão da Retroatividade
A aplicação retroativa merece reflexão cuidadosa. Contratos de credenciamento, que frequentemente se estendem por anos, serão impactados. Um hospital que, em 2021, calculava receber R$ 150.000,00 de glosas judicializadas com base em IPCA-Saúde mais juros de 1% ao mês, pode agora receber valor diferente com a Selic. Dependendo do período e da oscilação das taxas, pode haver ganho ou perda significativa.
Essa mudança nas regras do jogo, embora tecnicamente justificada pela necessidade de uniformização jurisprudencial, toca na previsibilidade que o mercado de saúde tanto valoriza e necessita para sua sustentabilidade.
O STJ fundamenta a retroatividade na interpretação do artigo 406 do Código Civil. A norma sempre existiu. O que muda é apenas a sua interpretação uniforme. Não se trata, portanto, de aplicação retroativa de lei nova, mas de definição do sentido de lei antiga. Esse argumento é juridicamente robusto. Mas, do ponto de vista econômico e gerencial, o efeito prático é semelhante: alteração de expectativas consolidadas e impacto direto em fluxos de caixa projetados.
Recomendações Práticas para o Setor de Saúde
Diante do novo cenário, sugere-se aos agentes do setor:
- Revisar todos os contratos de credenciamento em vigência quanto à existência e clareza de cláusulas sobre juros e correção monetária
- Atualizar modelos-padrão de contratos incluindo índices que reflitam a inflação médica (IPCA-Saúde, IGP-M)
- Reavaliar provisões contábeis de glosas judicializadas e contas a receber/pagar
- Considerar acordos judiciais em processos pendentes, aproveitando a nova previsibilidade de cálculo
- Documentar detalhadamente a inflação de custos operacionais (medicamentos, materiais, pessoal) para eventual uso do art. 404 do CC
- Capacitar equipes de faturamento e auditoria sobre a importância da especificação contratual
- Implementar ou revisar processos de mediação e arbitragem para glosas, reduzindo judicialização
- Revisar processos de aprovação de minutas contratuais, garantindo análise jurídica e financeira integrada
Considerações Finais
Em síntese, a decisão do STJ inaugura nova era de previsibilidade na atualização de débitos civis, com impactos profundos e imediatos para o setor de saúde brasileiro. A Selic torna-se padrão nacional, mas a autonomia privada permanece intocada: contratos bem redigidos podem e devem prever índices que melhor reflitam a realidade econômica setorial. O desafio está na transição e na adequação de expectativas sobre créditos e débitos passados.
A decisão representa um marco na evolução do direito civil brasileiro. Alinha o Judiciário à realidade econômica contemporânea. Promove isonomia e simplificação. Para hospitais, clínicas, operadoras de planos de saúde, laboratórios e fornecedores, a mensagem é inequívoca: a Selic é agora o denominador comum das obrigações civis não convencionadas. O planejamento financeiro e jurídico deve incorporar urgentemente essa nova realidade, privilegiando a clareza contratual e a especificação de índices adequados ao setor.
O desafio, contudo, permanece. A segurança jurídica não se constrói apenas com uniformização de índices. Ela exige também respeito às expectativas legítimas e à estabilidade das relações passadas. A decisão é tecnicamente impecável. Mas o ideal seria que a uniformidade do presente não gerasse incertezas sobre o passado. O direito e a economia caminham juntos. E ambos dependem de um elemento essencial: a confiança. A decisão fortalece a previsibilidade futura. Resta saber se o custo da transição será absorvido sem abalos pela indústria da saúde, setor que já opera sob significativa pressão financeira e regulatória, e que é absolutamente essencial para a sociedade brasileira.
*Arthur Mendes Lobo é advogado e sócio-fundador do escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados.
