Diferença na sobrevida por câncer de mama chega a 16 pontos entre SUS e rede privada
O câncer de mama é a neoplasia mais comum entre as mulheres e, ao mesmo tempo, uma das principais causas de mortalidade por câncer em todo o mundo. Embora o Brasil tenha avançado no acesso ao tratamento oncológico, uma nova pesquisa revela que a forma como as pacientes chegam ao sistema de saúde em São Paulo e recebem cuidados impacta diretamente em suas chances de sobrevivência a longo prazo. O estudo, publicado em 25 de setembro na revista científica Clinical Breast Cancer, analisou dados de 65.543 mulheres diagnosticadas entre 2000 e 2020 no estado de São Paulo, comparando os desfechos entre aquelas tratadas na rede pública, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e as que tiveram atendimento na rede privada.
O trabalho foi liderado pelo radio-oncologista Gustavo Nader Marta, presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), que assina o trabalho como médico e pesquisador vinculado ao Hospital Sírio-Libanês e ao Latin America Cooperative Oncology Group (LACOG) e livre-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). “O que nossos dados demonstram de forma inequívoca é que o local de tratamento ainda determina fortemente o prognóstico das pacientes. Isso reflete desigualdades estruturais e precisa ser enfrentado com urgência”, afirma Gustavo Marta.

Diagnóstico tardio e impacto direto na sobrevida
A análise mostrou que pacientes da rede privada chegam com mais frequência em estágios iniciais da doença: 41,4% foram diagnosticadas em estágio I, contra apenas 21,2% no SUS. No sistema público, por outro lado, os diagnósticos em estágio avançado são significativamente mais comuns: 29,5% das mulheres estavam em estágio III e 11,1% já tinham metástase (estágio IV), contra 16,9% e 5,3%, respectivamente, na rede privada.
Essas diferenças no momento do diagnóstico se refletem diretamente nas taxas de sobrevida. Em dez anos, a chance de estar viva após o diagnóstico em estágio II era de 74% na rede privada, mas apenas de 63,3% no SUS. Em estágio III, a discrepância é ainda mais marcante: 55,6% contra 39,6%. Já em casos metastáticos houve 7,6% de sobrevida na rede privada e 6,4% no SUS.
Gustavo Nader Marta explica que os números reforçam a importância diagnóstico precoce. “Quando a paciente é diagnosticada tardiamente, mesmo que receba os mesmos tipos de tratamento, suas chances de longo prazo ficam muito comprometidas. O estudo evidencia que precisamos fortalecer políticas públicas de rastreamento e ampliar o acesso a exames de imagem de forma equitativa”, explica o médico.
Educação e acesso: determinantes da sobrevivência
Além do sistema de saúde, o estudo identificou outros fatores que influenciam a sobrevida. A escolaridade mais alta apareceu como um dos preditores independentes de melhores resultados, assim como a realização de terapias combinadas (cirurgia associada à radioterapia, quimioterapia ou hormonioterapia). “A educação em saúde cumpre um papel central. Pacientes com maior nível educacional têm mais ferramentas para reconhecer sintomas precoces e buscar atendimento. Além disso, conseguem navegar melhor pelo sistema, garantindo acesso a múltiplas modalidades terapêuticas”, analisa Marta.
Esse dado, segundo os autores, reforça a noção de que políticas de combate ao câncer precisam ir além da estrutura hospitalar. É necessário investir também em informação, letramento em saúde e suporte para que mulheres em situação de vulnerabilidade não cheguem ao diagnóstico já em fases avançadas da doença.
SUS avança, mas desigualdades persistem

Apesar das diferenças, o estudo também aponta sinais positivos. Houve melhoria gradual nas taxas de sobrevida das pacientes do SUS ao longo das duas décadas analisadas, indicando que políticas de expansão do acesso, como a incorporação de novos equipamentos de radioterapia, começam a surtir efeito. Ainda assim, a desigualdade permanece evidente. “Não podemos ignorar que, no Brasil, a chance de sobreviver ao câncer de mama ainda está atrelada ao CEP da paciente, ao nível educacional e ao setor em que ela é atendida. Essa é uma realidade que precisa ser enfrentada com ações estruturais”, reforça Marta.
Entre as medidas necessárias, o pesquisador destaca a ampliação da cobertura de mamografia, a redução do tempo entre a suspeita clínica e a confirmação diagnóstica e a melhor distribuição de serviços de radioterapia e oncologia cirúrgica. “Investir em diagnóstico precoce e em acesso equitativo a tratamentos modernos não é apenas uma questão técnica, mas de justiça social. A recente recomendação do Ministério da Saúde de iniciar o rastreamento populacional com mamografia a partir dos 40 anos é muito bem-vinda”, resume o presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia.
Comparações internacionais e desafios
As conclusões do estudo paulista dialogam com evidências internacionais de países de baixa e média renda, que enfrentam desafios semelhantes. Na avaliação de Marta, “o Brasil pode servir de exemplo de como um sistema universal, como o SUS, traz avanços inegáveis em termos de acesso, mas que, sem investimentos em qualidade e equidade, acaba perpetuando diferenças graves nos resultados”.
O autor lembra que outras pesquisas já haviam mostrado discrepâncias semelhantes em tumores como o glioblastoma, em que pacientes do SUS vivem, em média, metade do tempo das que são atendidas na rede privada. “Nosso trabalho confirma que não se trata de um problema isolado de um tipo de câncer, mas de uma questão estrutural que atravessa diferentes doenças oncológicas”, afirma.
Gustavo Marta afirma também que o momento é estratégico, já que a discussão sobre financiamento e fortalecimento do SUS está em pauta. “Precisamos olhar para esses dados como um chamado para a ação. Não é aceitável que, em pleno 2025, a chance de uma mulher sobreviver ao câncer dependa do tipo de convênio de saúde que ela tem”, diz o pesquisador.
Além de Gustavo Nader Marta (Hospital Sírio-Libanês, Latin America Cooperative Oncology Group e Faculdade de Medicina da USP) também assinam o artigo os pesquisadores Allan Andresson Lima Pereira (H. Lee Moffitt Cancer Center & Research Institute, EUA); Carlos Henrique Dos Anjos (Hospital Sírio-Libanês); Rudinei Diogo Marques Linck (Hospital Sírio-Libanês); Daniel de Araujo Brito Buttros (Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp); Lincon Jo Mori (Hospital Sírio-Libanês); Samir Abdallah Hanna (Hospital Sírio-Libanês); André Guimarães Gouveia (University of British Columbia e BC Cancer, Canadá, e LACOG); e Fabio Ynoe de Moraes (Queen’s University, Canadá e LACOG).

