Burocracia impede que políticas de saúde cheguem a presídios
Desde 2014, o sistema prisional brasileiro é contemplado pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade (PNAISP). Por meio da PNAISP, cada unidade básica de saúde prisional passou a ser um ponto da Rede de Atenção à Saúde, dando à população carcerária acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). Embora essa política exista, sua implementação é fortemente influenciada pelas crenças, ideias e julgamentos de valor dos responsáveis por sua implementação nas prisões.
“Estes burocratas de nível de rua podem agir influenciados pelos contextos e por seus próprios referenciais. No caso do sistema carcerário, um espaço ainda bastante permeado por preconceitos, referenciais individuais – que incluem questões morais e de juízos de valor – podem influenciar ainda mais a implementação de políticas.” É o que afirma Mariana Scaff, doutoranda no Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP. A pesquisadora publicou um editorial especial para o Journal of Public Health. O artigo integra a série Young Researcher Editorial, sobre os desafios e perspectivas da saúde pública na América Latina.
Em seu artigo intitulado Access to Healthcare in Brazilian Prisons: Why is it Important to Look at the Bureaucracy and Policy Implementation? (em tradução livre, Acesso à Saúde em Prisões Brasileiras: Por Que é Importante Olhar para a Burocracia e para a Implementação das Políticas?), a autora explica que os responsáveis pela implantação da PNAISP são profissionais multidisciplinares das equipes prisionais de atenção primária.
De acordo com Mariana, estas equipes podem se organizar em diferentes composições, a depender de critérios como o número de pessoas custodiadas e seus perfis epidemiológicos. “No mínimo, sua composição deve ter um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem ou auxiliar de enfermagem, um cirurgião-dentista e um técnico ou auxiliar de saúde bucal”, descreve.
A autora reúne outras publicações que discutem o conceito, como o artigo da professora da USP Marta Arretche intitulado Uma Contribuição para Fazermos Avaliações Menos Ingênuas. Para ela, o desempenho destes profissionais que atuam diretamente com o público é influenciado por condições políticas, econômicas e institucionais, juntamente com seus próprios preconceitos, interesses e ideologias. “Estes burocratas de nível de rua são essenciais para que a política aconteça. Eles precisam permanecer no sistema, mas, claro, levando em consideração que eles podem transformar o modo como as políticas foram concebidas. É essencial, portanto, reconhecer que existe uma dinâmica de interações entre usuários da política – pessoas privadas de liberdade – e os implementadores – equipes de atenção básica prisional”, afirma Mariana.
A pesquisadora propõe que se reconheça a atuação da burocracia do nível de rua para além dos critérios de neutralidade. “Devemos olhar além das especificações políticas formais para melhorar a saúde prisional. Regras e diretrizes institucionais são muitas vezes abstratas e podem ser interpretadas de forma ampla, o que dá ao burocrata implementador muita liberdade de ação”, sugere no artigo. Mariana conclui que, ao compreender estas circunstâncias e mecanismos, será possível aprimorar as políticas de saúde que incidem dentro do sistema carcerário.
Comunidade carcerária
A população carcerária da América Latina cresceu exponencialmente nas últimas décadas, chegando a 1,4 milhão de pessoas privadas de liberdade. Com mais de 835 mil presos, o Brasil lidera a classificação no continente e segue tendo a terceira maior população carcerária do mundo. Para além destes números, faltam dados de acesso público sobre a situação de saúde nos presídios brasileiros.
Em junho de 2022, durante audiência pública na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, o coordenador de Saúde do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Rodrigo Pereira, informou em torno de 33 mil pessoas privadas de liberdade tinham o diagnóstico das doenças infecciosas mais prevalentes no sistema prisional: HIV/aids, hepatite, sífilis e tuberculose. Em dois anos, os casos de HIV passaram de cerca de 8,5 mil para 10,1 mil.
Cerca de 77 mil casos de tuberculose são registrados por ano no Brasil. Aproximadamente 11% ocorrem nas unidades prisionais, conforme tese realizada pela pesquisadora da USP, Daniele Maria Pelissari, reconhecida no Prêmio Capes de Tese 2020 da área de Saúde Coletiva. Segundo a especialista, a transmissão é aérea e, apesar dos esforços em saúde para controle da tuberculose em alguns presídios, a superlotação é o principal fator de disseminação.
(*Com informações do Jornal da USP / Tabita Said, FSP e da Agência Câmara de Notícias)