Saúde digital deve ser utilizada para provocar mudança disruptiva

Por Marcelo Fanganiello

Atualmente, temos em vigor no Brasil um modelo de saúde pública que utiliza o conceito de regulação para permitir o acesso de pacientes aos serviços de saúde, baseado em oferta e demanda e nos princípios do SUS. Contudo, este padrão está defasado, fadado ao fracasso, se formos falar bem a verdade. Repensá-lo é uma questão latente, especialmente sob a ótica do gestor, do paciente e seu acesso à saúde.

Estamos falando de um modelo que, por si só, não é resolutivo. Não precisamos ir longe para entender o porquê disso. Na saúde pública, superficialmente, temos um nível de assistência dividido em: atenção básica, no qual, teoricamente, a maioria das demandas deveria ser resolvida; e atenção especializada, que entra em cena para atender o que efetivamente não foi resolvido pela primeira, porém, criteriosamente.

Na atenção primária, ao nível nacional, é possível atender uma média superior a 500 mil pessoas por dia. Elas podem procurar a Unidade Básica de Saúde mais próxima da residência (sua unidade de referência) para atendimentos em praticamente todas as situações, exceto em casos de urgência ou emergência. Para esses casos específicos, as unidades referenciais devem ser as de Pronto Atendimento, hospitais gerais ou serviços habilitados em média e alta complexidade.

Para fins de entendimento, podemos dividir a atenção especializada em dois elementos: atenção secundária e terciária, que são, respectivamente, média e alta complexidade (ambulatorial e especializada hospitalar). A média complexidade é composta por serviços especializados encontrados em hospitais e ambulatórios e envolve atendimento direcionado para áreas como pediatria, ortopedia, cardiologia, oncologia, neurologia, psiquiatria, ginecologia, oftalmologia, entre outras especialidades médicas a depender da pactuação local.

Como a atenção básica com a atual estruturação não é resolutiva, os encaminhamentos para a atenção especializada acabam sendo aleatórios e sem coerência. Digo isso porque sabemos que o volume de casos não resolvidos na atenção básica é gigantesco e o resultado é uma fila desorganizada e sem prioridade.

Com um volume grande de pessoas entrando na fila aguardando atendimento, a demanda aumenta, mas a oferta de serviços de saúde continua inalterada. Ou seja, todos os meses somam-se mais pessoas à fila de espera por atendimento e o sistema não consegue suprir, seja por ineficiência do processo ou pelos mais diversos motivos, como falta do paciente em consultas, exames e procedimentos, esquecimento, demora no agendamento (e a consequente resolução do caso através de outros meios), falta de dinheiro para chegar ao local indicado, etc. No final, o resultado é um acúmulo de pacientes que não conseguem ter suas demandas resolvidas em tempo razoável. Isso vale para todas as especialidades médicas, obviamente com maiores ou menores criticidades dependendo da localidade.

Neste cenário, acontece o que chamamos de perda tanto primária quanto secundária. A primária se dá quando não se consegue preencher uma vaga através da marcação do paciente em tempo hábil, e a secundária, ainda pior, é aquela na qual o paciente consegue o agendamento e não comparece à consulta.

Quase meio milhão de pessoas estão na fila de espera para a realização de um algum tipo de exame médico somente na rede municipal de saúde da cidade de São Paulo. No estado, esse número é ainda maior: mais de 630 mil pessoas na fila. Os exames com mais tempo de espera são os radiológicos, especialmente ultrassonografias e ressonâncias magnéticas.

Entre janeiro e março deste ano, 12.652 procedimentos foram cancelados na rede municipal. Entre os principais motivos de cancelamento estão: falta do paciente, a chamada perda secundária (29%); impossibilidade das unidades de saúde (7%); e falta do profissional (4%). Estes números são ainda muito maiores em outros municípios do Brasil.

Neste cenário, a utilização de tecnologia e, principalmente, gestão da saúde digital, quando bem estruturadas, tornam o processo muito mais resolutivo e qualitativo. Para isso, precisamos colocar em prática o conceito de pré-regulação em saúde. Mas como isso funciona? Por meio da adoção de tecnologia, usando uma plataforma de gestão em saúde integral e a junção de um serviço de saúde estruturado e preparado para isso, de forma remota, posicionado estrategicamente entre a atenção básica e a especializada, é possível resolver/otimizar de 80 a 90% das demandas que entram, ou seja, elas são resolvidas dentro desse ecossistema, diminuindo de forma exponencial a ascensão do caso para a regulação.

Dentro desse ecossistema integrado de saúde digital, o profissional, alocado de forma remota, pode atender diversas demandas apesar das barreiras físicas. Através da avaliação do caso, muitas vezes de forma assíncrona (sem a necessidade do paciente presente na consulta), outras de forma síncrona, como, por exemplo, no atendimento do paciente em sua casa através de um aplicativo. A forma híbrida também pode ser utilizada na UBS de referência do paciente. Assim, o profissional de saúde consegue reduzir em muito a necessidade da visita presencial do paciente na consulta, podendo “eliminar” a necessidade de encaminhamento do caso para a regulação, evitando filas, diminuindo o tempo de espera e aumentando a eficácia de um eventual tratamento por ser iniciado em tempo hábil. O que, no primeiro momento, pode parecer para os municípios um “investimento extra”, quando bem estruturado, resulta em uma economia gigantesca.

Outro ponto que deve ser observado, quando da escolha de tecnologias para esses objetivos, deve ser a sua adequação sanitária. Da mesma forma que um equipamento médico, os sistemas de telessaúde, quando utilizados para fins diagnósticos ou mesmo preventivos, são considerados “produtos para saúde” e devem ser tratados como tal, possuindo o devido registro na ANVISA.

Com processos bem estabelecidos e utilizando a tecnologia para organizar atendimentos e processos, podemos levar a saúde pública a outro nível de eficiência e eficácia.

A regulação em saúde de hoje, do modo como é tratada, tem data para acabar.


*Marcelo Fanganiello é diretor da GetConnect.

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