Sanguessugas do nosso tempo e o avanço da pesquisa clínica
Por André Zimerman
O ano é 1825. Numa ruela de Paris, entre o rangido das carruagens e o cheiro de baguete, uma senhora entra no consultório médico mais badalado da cidade por uma teimosa dor de ouvido – e sai com o braço coberto de sanguessugas. Passados 200 anos, o moderno tratamento da época parece mais extinto do que ficha de orelhão. Mas por quê? O calendário, por si só, não cura a nossa ignorância. Na medicina, a responsável se chama pesquisa clínica.
Foi através da pesquisa clínica que vimos a sífilis ser curada pela penicilina, a varíola erradicada pela vacina, o infarto prevenido pela estatina. A morte materna no parto, tão trágica quanto frequente ao longo da nossa história, felizmente tornou-se raridade. Nossa expectativa de vida aumentou em décadas. Por trás de cada uma dessas revoluções científicas aconteceu o mesmo ciclo virtuoso: curiosidade que gerou hipótese, método que gerou dado, análise que gerou resposta. E resposta que gerou vida.
Por muito tempo, o Brasil se conformou com o atraso como quem sopra um LP em tempos de Spotify. Mas isso está mudando. Durante a pandemia de covid-19, ensaios clínicos liderados pelo Brasil levaram a descobertas que beneficiaram o mundo inteiro. Há poucos meses, o Hospital Moinhos de Vento inaugurou a primeira Unidade de Ensaios Clínicos (Academic Research Organization) do Sul, criada para responder questões relevantes e de interesse público em saúde. Mas, em última instância, o verdadeiro protagonismo vem dos próprios pacientes: heróis anônimos que, mais do que receber atendimento diferenciado e acesso a novas terapias, emprestam o próprio corpo para ajudar o próximo.
Atualmente, imprimimos tecidos 3D, curamos doenças genéticas e criamos órgãos em chips. É possível que, em 200 anos, o infarto seja tão prevenível quanto a cólera, e a quimioterapia pareça tão primitiva quanto o xarope de vinagre prescrito na peste negra. Mas esse avanço só acontecerá se continuarmos investindo no instrumento que transforma hipótese em evidência e evidência em saúde: a pesquisa clínica. Tudo para que possamos deixar para trás as sanguessugas do nosso tempo.
*André Zimerman é Cardiologista do Hospital Moinhos de Vento.