Enfrentando o dilema ético da retenção de faturamento

Por Michel Goya

Após um período tumultuado, onde o sistema de saúde brasileiro foi submetido a uma intensa pressão devido à emergência da Covid-19, seguido pelo desafio de lidar com o represamento de cirurgias e tratamentos, o ano de 2023 parecia ser um retorno à normalidade. Contudo, para o setor de saúde, esse período também trouxe desafios significativos, principalmente quando se trata de investimentos em saúde pública, que atingiram o menor patamar em uma década.

Segundo dados da Abraidi (Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde), uma prática recorrente tem se agravado no último ano , chegando a níveis insustentáveis: a retenção de faturamento. Essa prática envolve a entrega de dispositivos médicos, como próteses e stents, para cirurgias, seguida pela exigência dos compradores, sejam planos de saúde ou hospitais, de atrasar a emissão da nota fiscal, prolongando assim o período sem registro oficial da transação.

De acordo com levantamento feito pela Abraidi e apresentado no Fórum 2024, mais de R$ 2 bilhões em vendas estão atualmente sem emissão de nota fiscal, um número que dobrou em relação ao ano anterior. O tempo médio até a emissão da nota fiscal está em torno de 120 dias, mas alguns casos chegam a ultrapassar um ano de atraso. O gráfico a seguir ilustra o fluxo de como acontece o problema até chegar no problema enfrentado hoje.

Os impactos dessa prática são alarmantes, especialmente no setor de fornecimento de Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPME), para o fluxo de caixa e para a própria economia do país. Em 2023, a soma das retenções de faturamento, glosas e inadimplência nesse setor alcançou a marca de R$ 3,8 bilhões. Quem sofre as consequências diretas são as empresas fornecedoras, onde os caixas são afetados.

O dilema ético se torna evidente quando consideramos que a cirurgia foi realizada, o paciente tratado e liberado, mas o fornecedor ainda não consegue emitir a nota fiscal do material utilizado. Isso não apenas afeta o fluxo de caixa das empresas, mas também levanta preocupações sobre possíveis autuações por sonegação fiscal. Abaixo é possível visualizar como a retenção quase dobrou no último ano. É importante ressaltar que todos os números apresentados são levantamentos feitos com os associados da Abraidi, o valor total passa do dobro.

Os fornecedores se encontram em uma posição delicada, muitas vezes aceitando postergar o faturamento devido ao receio de retaliação comercial por parte dos compradores, que geralmente são empresas maiores com maior poder de compra. O prazo dilatado de recebimento coloca em risco a saúde financeira das empresas fornecedoras, além de comprometer a formalização das relações comerciais no setor.

Dados da Abraidi revelam que, dos R$ 1,1 bilhão de faturamento retido, uma parcela significativa corresponde a produtos entregues para hospitais privados e convênios, planos de saúde e seguradoras. O problema não afeta apenas as empresas fornecedoras, mas também representa um desafio para a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo.

É fundamental que as partes envolvidas, sejam fornecedores, hospitais, operadoras de saúde ou órgãos reguladores, unam esforços para encontrar soluções éticas e sustentáveis para esse problema. Trata-se de algo que pode gerar um colapso no sistema de saúde, pois, sem os materiais, a cirurgia não acontece. A transparência e a responsabilidade devem guiar as relações comerciais, garantindo o acesso adequado aos dispositivos médicos necessários para o tratamento dos pacientes, ao mesmo tempo em que se respeitam os princípios éticos e fiscais.


*Michel Goya é CEO da OPME Log e diretor da Associação Brasileira de Startups de Saúde.

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