Reprodução Após a Morte: limites da vida e da parentalidade
A medicina reprodutiva tem nos desafiado a repensar os limites da vida e da parentalidade. Um dos temas mais delicados é o uso de técnicas de reprodução assistida após a morte de um dos parceiros. A Resolução CFM nº 2.320/2022 estabelece que a prática é permitida desde que haja autorização específica em vida para o uso do material biológico. Essa diretriz, embora clara, ainda esbarra em questões éticas, emocionais e jurídicas complexas.
Imagine um casal que decide congelar embriões durante um tratamento de fertilização in vitro. Anos depois, um dos dois falece. O que fazer com esse material genético? A viúva ou viúvo pode usá-lo para gerar um filho? E mais: esse filho será reconhecido como herdeiro legal? A legislação brasileira, embora avance em alguns aspectos, ainda caminha lentamente diante de dilemas que envolvem o desejo de continuidade familiar e os direitos do nascituro.
Algumas decisões judiciais têm reconhecido o direito ao uso do material criopreservado, desde que haja autorização prévia expressa e inequívoca. No entanto, a ausência desse consentimento gera disputas judiciais dolorosas, envolvendo familiares, clínicas e, muitas vezes, o próprio Estado. Além disso, levanta-se a questão: é ético gerar uma vida sem que um dos genitores tenha ciência ou participação nesse desejo?
É essencial que clínicas e profissionais da área orientem seus pacientes sobre a necessidade de documentar o destino dos gametas e embriões em caso de falecimento. Trata-se de um cuidado não apenas jurídico, mas humano. A reprodução post mortem pode, sim, ser um gesto de amor e esperança, desde que respeite a autonomia, a legalidade e os limites da ética.
Num mundo em constante transformação, precisamos debater com responsabilidade o direito de nascer — mesmo depois da morte.
*Marcelo Cavalcante é Especialista em Reprodução Humana.