Regulamentação da telemedicina: o impacto da pandemia de Covid
Por Rubens Granja, Julia Kesselring e Brenda Ohnuki
Telemedicina não é um tema propriamente novo. Há registros remotos de seu uso – como no combate à peste negra e no atendimento aos soldados feridos durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial – e o estabelecimento do seu pilar regulatório data dos anos 1990, com a “Declaração de Tel Aviv sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da Telemedicina” (adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Tel Aviv/Israel, em outubro de 1999).
Contudo, é inegável que a eclosão da pandemia da Covid-19 catapultou a importância do tema: ante à necessidade de prestar atendimento a pacientes sumariamente impossibilitados de ir ao consultório – em razão das rígidas regras de isolamento e distanciamento social – as autoridades de todo o mundo (e assim também as brasileiras), viram-se forçadas a promover, repentinamente, o uso e a regulamentação da telemedicina. Os avanços, em tão curto espaço de tempo, foram notáveis.
A regulamentação brasileira sobre telemedicina
No Brasil, a telemedicina foi regulada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 26.8.2002, por meio da Resolução CFM n° 1.643/2002. De acordo com a referida norma – que permanece vigente até hoje – o uso da telemedicina seria limitado ao atendimento de pacientes em locais remotos (longe das instituições de saúde ou em áreas com escassez de profissionais médicos) e, ainda assim, desde que (i) mediante emprego de infraestrutura tecnológica apropriada (capaz de garantir a qualidade da consulta, a preservação da relação médico-paciente, o sigilo profissional e a confidencialidade dos dados do paciente); (ii) sob responsabilidade profissional do médico; e (iii) mediante cadastro no CFM da empresa intermediadora dos serviços de telemedicina.
Além disso, tratando-se de norma geral e vaga, o CFM editou, ao longo dos anos, diversas Resoluções esparsas, que visavam a regular aspectos específicos da telemedicina, como por exemplo a Resolução CFM n° 2.107/2014 (que dispôs sobre o usa da telerradiologia), a Resolução CFM nº 2.264/2019 (que dispôs sobre o uso da telepatologia, entre outras.
No entanto, a Resolução CFM nº 1.643/2002 e as normas esparsas relacionadas ao tema sempre foram consideradas demasiadamente restritivas e, portanto, incapazes de estimular o uso da telemedicina – em particular por conta de regras como a vedação à prescrição médica sem o exame físico do paciente e a necessidade de inscrição do profissional junto ao Conselho Regional de Medicina de todos os Estados em que o médico presta serviços.
Na tentativa de reverter essa situação, em 6.2.2019, o CFM publicou a Resolução CFM nº 2.227/2019, estabelecendo regras mais claras e permissivas. Com o objetivo de compatibilizar o exercício da telemedicina aos avanços tecnológicos da medicina e das comunicações eletrônicas, a Resolução CFM nº 2.227/2019 englobou, dentre outros temas, questões como a privacidade das informações, sigilo profissional e responsabilidades do médico – definindo, delimitando e regulamentando os serviços passíveis de serem prestados por telemedicina (teleconsulta, telediagnóstico, telecirurgia; dentre outros).
Mas embora tenha sido comemorada por muitos setores do mercado brasileiro de assistência à saúde, a nova Resolução foi rejeitada por sindicatos médicos e Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), ao argumento de que as novas regras deixariam médicos e pacientes vulneráveis, e tenderiam a provocar um indesejável distanciamento entre médico e pacientes. As críticas foram tão intensas, que levaram o CFM a revogar a nova Resolução dias após sua publicação, com a promessa de, futuramente, reabrir o tema à discussão da classe médica. Por ora, reestabeleceu-se a vigência da Resolução CFM n° 1.643/2002.
As mudanças impostas pela pandemia da Covid-19
A regulamentação da telemedicina permaneceu inalterada até a eclosão da pandemia da Covid-19. Com a necessidade de promover o isolamento e o distanciamento social, as autoridades foram forçadas a, rapidamente, editar normas que viabilizassem a utilização em larga escala da telemedicina. Em um curto espaço de tempo, diversas mudanças ocorreram:
(i) Em 19.3.2020, o CFM encaminhou ofício ao MS, reconhecendo a possibilidade de utilização ética da telemedicina nos casos de teleorientação (para orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento), telemonitoramento (para monitoramento remoto de parâmetros de saúde), e teleinterconsulta (para troca de informações e opiniões entre médicos, a fim de auxiliar o diagnóstico ou a conduta terapêutica).
(ii) Em 23.3.2020, em resposta ao CFM, o Ministério da Saúde publicou a Portaria n° 467/2020, que, de forma excepcional e temporária, autorizou (a) o exercício da telemedicina para atendimento pré-clínico, suporte assistencial, consulta, monitoramento e diagnóstico (nos sistemas de saúde público ou privado); e (b) a emissão eletrônica de atestados e receitas médicas.
(iii) Em 16.4.2020, a fim de proporcionar maior segurança jurídica, o Congresso Nacional publicou a Lei nº 13.989/2020, que autorizou a telemedicina em caráter emergencial, e permitiu o atendimento virtual, mesmo sem qualquer possibilidade de exame físico presencial.
(iv) Em 10.6.2020, a Presidência da República publicou a Medida Provisória n° 983/2020, que regulamentou a assinatura eletrônica e permitiu a emissão e assinatura de atestados médicos eletronicamente, facilitando a obtenção dos medicamentos prescritos remotamente.
O resultado não poderia ser outro: um ano e meio após o início da pandemia, a telemedicina se tornou uma realidade no território brasileiro: de um lado é amplamente utilizada por planos de saúde, hospitais e médicos; de outro, é extremamente bem avaliada por pacientes em todos os cantos do país.
A telemedicina no mundo pós-pandemia
Por mais que tenha sido incorporada à prática médica, a telemedicina continua a ser regulamentada em caráter provisório, sendo seu exercício autorizado apenas por medidas excepcionais e temporárias, que permanecerão vigentes apenas até o fim do estado de emergência de saúde pública decorrente da pandemia. Se nada mudar, encerrada a pandemia, retornaremos ao cenário anterior, de regulamentação vaga e restritiva.
Por isso, autoridades, comunidade médica e os diversos agentes do mercado de assistência à saúde (em particular planos de saúde e hospitais) já discutem intensamente a regulamentação da telemedicina num mundo pós-pandemia. Os debates têm sido travados tanto no âmbito do Conselho Federal de Medicina (que discute uma nova Resolução sobre telemedicina) quanto no Congresso Nacional (onde tramitam projetos de lei acerca do tema).
E embora a telemedicina tenha sido muito bem recebida durante a pandemia, não há consenso acerca de pontos críticos de uma futura regulamentação. Dentre os pontos mais polêmicos encontram-se (a) a obrigatoriedade ou não de uma primeira consulta presencial (a fim de permitir o exame físico do paciente); (b) a necessidade de inscrição do médico nos Conselhos Regionais de Medicina de todos os Estados aos quais prestar serviços remotos; e (c) a possibilidade irrestrita ou condicionada de utilização da telemedicina nas diversas áreas médicas (em função do maior ou menor grau de interação física com o paciente).
Mas o fato é que, mesmo com incerteza quanto às soluções que serão adotadas, é necessário e urgente regulamentar a telemedicina com máxima brevidade. A pandemia da Covid-19 deixou claro que a telemedicina é um instrumento concreto, atual e efetivo para ampliação do acesso à saúde. Resta seu reconhecimento por uma regulamentação sólida, que confira segurança jurídica ao seu exercício.
*Rubens Granja, Julia Kesselring e Brenda Ohnuki são, respectivamente, sócio, associada sênior e estagiária em Kestener, Granja & Vieira Advogados.