Prevenir ou preocupar? Para que serve um exame afinal?

Por János Valery Gyuricza

O ditado popular “prevenir é melhor do que remediar” reforça a ideia geral de que, com exames, os médicos são capazes de prevenir doenças ao realizar o diagnóstico precoce, e de que esse diagnóstico levará ao tratamento mais rápido, sendo estes eventos certos e sempre benéficos. Entretanto, na prática clínica este ditado não se aplica, já que são poucos os exames disponíveis que têm ao mesmo tempo capacidade de diagnosticar precocemente uma doença de alto impacto individual ou coletivo, que seja tratável, e cujo tratamento precoce leve à melhora da qualidade de vida e à diminuição das complicações desta doença. Vivemos há algumas décadas uma pandemia de exames desnecessários.

A realização de exames durante as avaliações médicas é parte fundamental da prática clínica, mas a lógica de seu uso nem sempre é compreendida por pacientes e, até mesmo, por alguns profissionais de saúde. Pensando nisso, é importante refletirmos: o que de fato é um exame e quais suas utilizações?

O que é um exame?

Na prática clínica, um exame é muito mais do que um procedimento laboratorial ou radiológico. Um exame é uma pergunta fechada para uma dúvida clínica.

Perguntas abertas são aquelas que respondemos com liberdade, impossíveis de serem respondidas com a simplicidade de um sim ou não. Um exemplo de pergunta aberta é um abrangente “como você se sente?”.

Já perguntas fechadas são aquelas que podemos responder diretamente, com sim ou não, ou utilizando as opções oferecidas. “Você sente dor ao urinar?” é uma pergunta fechada e “sua dor é do tipo pontada, facada ou queimação?” também.

Exames costumam ser aplicados por dois motivos principais: para investigar uma suspeita clínica ou para investigar preventivamente sinais de doença precoce. Um exame precisa ter um motivo para ser pedido, já que o motivo aumenta a chance de acerto na interpretação do resultado do exame.

As suspeitas clínicas ocorrem quando a avaliação médica não é conclusiva sobre a origem de sintomas e sinais presentes em uma pessoa, e o médico fica diante de uma incerteza clínica. Diante dessas incertezas, pode-se lançar mão de exames para tentar diminuir a incerteza e se aproximar de uma conclusão. Neste caso, os exames realizados servirão para confirmar ou afastar suspeitas até um nível de probabilidade suficiente para que se possa tomar uma decisão segura.

Check-up e Exames de Rastreamento

Hoje em dia é muito comum que as pessoas procurem por consultas médicas com o único motivo de “fazer check-up”. Nestas consultas, ao médico é solicitado que indique a realização de uma bateria de exames, muitas vezes para dar continuidade a um “programa” que já vinha sendo realizado anteriormente, ou apenas para que veja o resultado desta lista infinita de exames já realizada.

Até hoje, não há evidências de que um exame clínico periódico (check-up) baseado no exame físico e numa bateria de exames laboratoriais e radiológicos seja capaz de identificar as pessoas com maior risco de adoecimento e pode-se afirmar que só existe sentido no check-up caso este tenha como objetivo conhecer os hábitos, estilo de vida, fatores de risco e vulnerabilidades do paciente. Assim, diante deste conhecimento ampliado da saúde, cabe ao profissional de saúde ouvir atentamente e conversar sobre as alternativas existentes e sugerir mudanças para se alcançar o objetivo de viver melhor.

Um exame de rastreamento é feito para uma pessoa dentro de um programa organizado de diagnóstico precoce de doenças. Deve ser realizado em uma população bem definida que será sistematicamente submetida ao exame, garantindo uma cobertura mínima desta população para sua realização, bem como garantindo todas as etapas de diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos aos indivíduos que participarem do programa. O exame de rastreamento é um filtro para identificar na população assistida, aquelas pessoas que têm maior probabilidade de ter uma doença. A pessoa com exame de rastreamento positivo não tem ainda o diagnóstico da doença e deve passar à etapa seguinte, que é a realização de mais exames diagnósticos. Estes exames diagnósticos são frequentemente invasivos e com maior potencial de causar danos às pessoas, como tomografias, endoscopias, biópsias, entre outros.

Para complicar ainda mais a história, todo exame está sujeito a erros e acertos. Por isso, ouvimos dizer que exames podem ter resultados verdadeiros e falsos, sejam positivos ou negativos. Na maioria das vezes, os resultados falsos negativos são os menos frequentes, seguidos dos verdadeiros positivos, depois dos falsos positivos e por fim dos verdadeiros negativos.

Muitas são as histórias sobre pessoas que se beneficiaram de exames que em princípio não eram para terem sido feitos, dando credibilidade ao exame “desnecessário”. Isto se deve ao enorme impacto que um resultado verdadeiro positivo tem para a história de vida e adoecimento de uma pessoa. Infelizmente, estes casos são as exceções. Para cada uma dessas pessoas, haverá muitas outras que terão sido submetidas a cascatas de exames e tratamentos desnecessários. Num contexto de baixa probabilidade de doença como uma consulta de check-up numa pessoa jovem, os exames acabam por produzir muito mais resultados falso positivos do que verdadeiro positivos. Isso acontece mesmo com exames consagrados, como mamografias e citologias de colo uterino. Uma mulher com mamografia de rastreamento positiva para câncer de mama têm mais chance de ter uma biópsia negativa do que positiva para câncer de mama: em torno de 1 em cada 10 mamografias positivas são confirmadas com resultados positivos de biópsias.

Os exames desnecessários colocam em risco a saúde das pessoas não só porque levam a intervenções desnecessárias, mas também porque têm enorme impacto psicossocial em quem recebe um resultado positivo. Mesmo em exames recomendados com a mamografia isso acontece. Muitas pessoas já conviveram com a angústia de uma mulher à espera da realização e do resultado de uma biópsia de mama após o resultado positivo de uma mamografia. É certo que o resultado negativo a seguir poderá trazer um alívio, mas a que custo? Fazemos mal a alguém para que, tirando o mal em seguida a pessoa se sinta bem?

Ajustes no corpo

Em outros casos, as pessoas procuram realizar exames para saber seus parâmetros, como se cada indicador bioquímico fosse um botão de uma mesa de som e o valor deste indicador fosse o nível a que este botão estaria definido. “Diminui o colesterol! Aumenta o zinco! Um pouquinho mais de testosterona! Isso aí, a vitamina D tá ótima! Agora corta o sal!” Existem valores ótimos? A saúde, o corpo-mente, é mesmo como uma música mixada em estúdio? Se a saúde é uma música, deve ser uma tocada ao vivo, com instrumentos acústicos e com participação do público e da natureza. Não há mesa de som que corrija um instrumento mal tocado.

Está tudo bem

Sempre que me deparo com resultados de baterias de exames fico admirado. Estatisticamente, a chance de um único exame em uma pessoa saudável estar alterado é de aproximadamente 5%. Isso se deve porque a faixa de normalidade de um exame é definida pela distribuição dos resultados do exame colhidos em uma população saudável. Toda distribuição normal tem faixas de probabilidades, os desvios padrão. Exames são considerados normais quando seu resultado está afastado a menos do que dois desvios padrão da média, o que engloba sempre aproximadamente 95% (95,45% para ser mais perto do exato) das pessoas. Então, pessoas saudáveis também podem apresentar exames alterados.

Não é incomum vermos relatórios com pelo menos 20 resultados de exames! Essa quantidade de exames eleva a chance de pelo menos 1 exame estar fora da faixa de normalidade a perto de 50%. Você já parou pra pensar por que, diante dos resultados desta bateria de exames frequentemente o resultado está fora da faixa de referência, mas mesmo assim o médico diz que “está tudo bem”?

Mas, se o resultado do exame não muda a conduta do médico, para que o exame foi pedido?

Papel da Atenção Primária

Uma das alternativas mais eficazes para combater o excesso de exames é o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde, privilegiando as abordagens integrais, longitudinais e centradas na pessoa. O vínculo diminui a realização de exames redundantes e demasiado frequentes, resultado que pode-se obter com um sistema de saúde capaz de coordenar o cuidado. A Atenção Primária à Saúde tem ainda papel na realização das partes comunitárias dos programas de rastreamento, promovendo a equidade, facilitando o acesso e garantindo o alcance do programa, com isso otimizando sua eficiência e eficácia.


*János Valery Gyuricza é Head de Medicina na Cuidas, startup que conecta empresas com médicos e enfermeiros para atendimentos no próprio local de trabalho. Médico formado pela Universidade de São Paulo, com residência em Medicina de Família e Comunidade no Hospital das Clínicas, na mesma universidade. É doutorando pelo Departamento de Medicina Preventiva (USP), em parceria com a Research Unit for General Practice da Universidade de Copenhague.

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