Incertezas, disputas e limites da prescrição farmacêutica

Por Vinicius Melo Santos e Mariana Carneiro Lopes Muniz

Dois meses após a publicação da Resolução nº 5/2025 do Conselho Federal de Farmácia – CFF, a prescrição farmacêutica continua sendo um tema cercado de incertezas e disputas judiciais.

A norma, publicada no Diário Oficial da União em 17 de março de 2025, nem chegou a entrar em vigor, haja vista decisão liminar proferida pelo juízo da 17ª Vara Federal da 1ª Região, nos autos da Ação Civil Pública nº1024895-51.2025.4.01.3400, determinando a suspensão da referida norma em todo território nacional, bem como proibindo o CFF de editar novo ato normativo sobre o tema até que haja decisão judicial definitiva sobre o processo.

O tema, que envolve diretamente a prática profissional de duas importantes áreas da saúde, a farmácia e a medicina, reacendeu um antigo debate sobre os limites da atuação profissional e a definição das atividades privativas de cada área, o que, em meio a um contexto de intensa judicialização, promove ainda mais insegurança jurídica, comprometendo a construção de soluções integradas para o aperfeiçoamento do sistema de saúde brasileiro.

A Resolução 5/2025 do CFF foi editada com o fim de regulamentar as bases em que o farmacêutico devidamente habilitado poderia (i) prescrever medicamentos, incluindo aqueles de venda sob prescrição médica, desde que, em relação a estes, o farmacêutico possuísse Registro de Qualificação de Especialista (RQE) em Farmácia Clínica; e (ii) renovar prescrições previamente emitidas por outros profissionais de saúde legalmente habilitados.

A norma reforçava a atuação do farmacêutico na atenção primária à saúde, o autorizando a realizar exames físicos para verificação de sintomas e sinais, avaliar reações adversas e intoxicação medicamentosa, solicitar exames de laboratório e prescrever tratamentos, farmacológicos ou não.

A medida, por outro lado, encontrou resistência logo após a sua publicação, em especial junto às entidades médicas, incluindo, o Conselho Federal de Medicina, que alegou que a resolução extrapolaria os limites legais do exercício profissional do farmacêutico, esbarrando em competências que são privativas dos médicos, o que representaria uma ameaça à segurança dos pacientes.

Neste contexto, o CFM ajuizou Ação Civil Pública contra o CFF, alegando, em síntese, que a Resolução 5/2025 tenta contornar decisão da 17ª Vara Federal da 1ª Região, de novembro de 2024, que declarou inconstitucional a Resolução CFF 586/2013, e que a nova norma viola, ainda, a Lei do Ato Médico nº 12.842/2013, ao permitir que farmacêuticos façam diagnóstico e indiquem tratamento terapêutico.

Ao suspender liminarmente os efeitos da Resolução CFF 05/2025, o juiz Alaôr Piacini fundamentou sua decisão dizendo que “o balcão de uma farmácia não é o local para se firmar um diagnóstico e tratamento de uma doença, sob pena do exercício ilegal da medicina” e que “somente lei de iniciativa da União, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada poderia, em tese, após amplo debate com a sociedade, atribuir ao farmacêutico as iniciativas constantes da Resolução 5/2025 do Conselho Federal de Farmácia”.

O CFF, por outro lado, defendeu que a Resolução 05/2025 não representa qualquer inovação em relação à matéria, uma vez que a prescrição farmacêutica já estaria prevista em outras normas anteriores, como por exemplo a Resolução CFF nº 585/13, que estabelece as diretrizes da farmácia clínica.

Nesse sentido, o CFF destacou que pretende apenas garantir a participação ativa do farmacêutico na equipe multiprofissional que opera no cuidado à saúde, e que esses profissionais possuem profunda compreensão em áreas como a farmacologia, farmacoterapia e a farmácia clínica, assegurando desse modo, conhecimento detalhado sobre o uso seguro e efetivo de medicamentos.

O CFF defende, ainda, que a tentativa de limitar o escopo de atividades do farmacêutico trata-se, na verdade, de uma postura corporativista, argumentando, outrossim, que proibir a prescrição farmacêutica comprometeria o acesso da população aos serviços de saúde.

Em que pese a polêmica esteja longe de ser decidida em definitivo, a discussão acerca da Resolução CFF nº 5/2025 evidencia a complexidade da disputa e os múltiplos interesses em jogo, que vão desde a organização das competências das profissões da área da saúde até o acesso efetivo da população a serviços de saúde.

Neste contexto, é fundamental que a análise da matéria seja conduzida com parcimônia, a fim de permitir a adequada ponderação do direito da população ao acesso oportuno e qualificado à saúde, inclusive em relação ao uso seguro e adequado de medicamentos, assim como que dito acesso seja intermediado por profissionais devidamente capacitados e habilitados.

Dada a especificidade do tema e o impacto no sistema de saúde brasileiro, o ideal seria a construção de um debate profundo e qualificado entre todos os agentes envolvidos, especialmente, mas não se limitando, os conselhos profissionais, as autoridades reguladoras, o Poder Legislativo, os profissionais da saúde e demais setores da sociedade civil.

Conforme acertadamente observou o juiz que determinou a suspensão liminar da Resolução 05/2025, o Congresso Nacional, enquanto espaço legítimo de representação e produção normativa, pode (e certamente deve) exercer protagonismo na definição final e equilibrada dos limites e atribuições entre as diferentes classes profissionais, de modo a garantir segurança jurídica, valorização profissional e, sobretudo, a satisfação do interesse público, por meio do atendimento do direito constitucional de amplo e seguro acesso qualitativo à saúde.


*Vinicius Melo Santos e Mariana Carneiro Lopes Muniz são da equipe Contratual e Societária de Lopes Muniz Advogados.

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