Perspectivas globais das cirurgias eletivas na era da Covid-19
Por Maurício Abrão
A pandemia da Covid-19 determinou um impacto sem precedentes nos sistemas de saúde ao redor do mundo. A interrupção da normalidade em nível local, nacional e internacional fomentou grande cooperação entre diversos setores para o combate ao vírus. Sociedades Médicas ao redor do mundo se reuniram para discutir padrões de segurança de procedimentos clínicos e cirúrgicos, equacionando a segurança de profissionais de saúde e pacientes, o uso ético dos leitos e a manutenção da oferta de tratamento médico.
Este artigo deriva dos desdobramentos da cooperação de um consórcio de diversas Associações Médicas Internacionais e da AAGL (Sociedade Americana de Cirurgia Ginecológica), onde sou membro do comitê executivo. Essa colaboração permitiu a conciliação de novos protocolos e orientações para retomar as práticas clínicas e cirúrgicas em âmbito internacional.
Nos primeiros meses, a falta de ferramentas de diagnóstico precisas e a ausência de terapias efetivas contra a Covid-19 gerou a paralisação de procedimentos cirúrgicos eletivos por indicação de órgão públicos e sociedades médicas. A ação foi um esforço para proteger e mitigar o risco aos pacientes e equipes de saúde, bem como preservar equipamentos de proteção individual (EPI) e manter a capacidade das instalações.
A cirurgia considerada “eletiva” ou “não emergencial” caracteriza-se quando pacientes com problemas crônicos podem ter o procedimento postergado, sem danos significativos ao paciente e sem alteração no prognóstico. Embora a necessidade crítica da abordagem cirúrgica seja discutível, muitas vezes os impactos da dor em situações como a endometriose, por exemplo, tem efeito deletério para a qualidade de vida da paciente e precisam ser considerados na decisão terapêutica.
Considerando os pontos acima, a reativação bem-sucedida das cirurgias eletivas requer clareza e critérios de priorização destinados a garantir a otimização de recursos e o atendimento seguro aos pacientes. Diversas iniciativas internacionais desenvolveram sistemas de pontuação de priorização, de modo a facilitar a triagem de casos com maior prioridade. A experiência cirúrgica também contribui para a diminuição de risco, com menor tempo de operação, menos complicações e menos readmissões.
Avaliações e Acompanhamentos por Telemedicina
A avaliação clínica e o acompanhamento longitudinal, bem como a decisão sobre a realização ou postergação da cirurgia, puderam ser securitizadas através da utilização da chamada Telemedicina. As consultas de atenção primária aumentariam a proximidade e a circulação de profissionais e pacientes, o que, por sua vez, facilitaria a disseminação viral. Parte da solução para este aspecto já se encontra em vigor no Brasil, com a autorização das práticas de atendimento virtual pelo Conselho Federal de Medicina. Neste sentido, um aprofundamento do uso de tecnologias ainda se faz imprescindível, assim como orientar o diagnóstico e direcionar as etapas do tratamento e acolhimento de pacientes. Diversos outros benefícios surgiram em decorrência dessa nova prática ao evitar deslocamentos desnecessários e diminuindo o tempo de espera para o atendimento.
Processos burocráticos de entradas, assim como diretrizes avançadas e reabilitação pós-cirúrgica podem agora serem discutidas virtualmente. Formulários, documentos e pré-autorizações devem considerar assinaturas eletrônicas e consentimentos verbais, documentados em prontuários eletrônicos.
Protocolos de Segurança para Realização de Cirurgias
Os protocolos para a retomada dos procedimentos cirúrgicos precisam seguir critérios como a testagem pré-cirúrgica, realizada através de testes PCR (Reação de Polimerase em Cadeia, exame que detecta a Covid-19) com coleta prioritariamente domiciliar, cerca de 2 a 3 dias antes das cirurgias e seguidos de isolamento na semana que antecede à cirurgia. A avaliação de critérios clínicos como a temperatura e os sintomas no ato da internação também devem acompanhar o rol de precauções, bem como cuidados anestésicos, uso de equipamentos de proteção individual e a limitação no número de acompanhantes dos pacientes.
Diversas instituições de saúde ao redor do mundo e também no Brasil estão procedendo com estratégias paralelas que observem os diferentes fluxos de pacientes. As chamadas áreas Covid-free têm figurado como uma estratégia importante para a retomada dos procedimentos eletivos, produzindo a separação de diferentes alas para pacientes com necessidades diferentes e reduzindo o risco de contaminação também aos profissionais de saúde.
Procedimentos Minimamente Invasivos
A Cirurgia minimamente invasiva é atualmente a forma cirúrgica mais moderna e indicada nas mais variadas especialidades e surge como outra importante aliada neste momento de diminuição de riscos. A técnica dispõe de fartos dados comprovando a menor exposição da paciente, menores taxas de complicações, grandes índices de alta precoce e menor probabilidade de realização de nova abordagem cirúrgica.
Sobre este aspecto, entretanto, os riscos da aerossolização – dispersão de partículas potenciais virais no ar – não devem ser ignorados e as medidas de proteção e contenção destes devem ser intensificadas. Deste modo, a desinfecção completa exige maior tempo entre os procedimentos para permitir a limpeza das salas de cirurgia, assim como dos quartos dos pacientes, após cada visita, e também das salas de espera, de exames e demais instalações hospitalares.
A Importância do Protocolo ERAS
A adoção dos protocolos de Otimização da Recuperação Pós-operatória (ERAS, na sigla em inglês) como critério de resolutividade e medicina baseada em valor também se faz imprescindível no cenário de retomada das cirurgias eletivas. O sistema, desenvolvido na Dinamarca no final da década de 1990, prevê abordagens multidisciplinares, com a colaboração de equipes de saúde e baseadas em evidências científicas para minimizar a dor, reduzir a administração de medicamentos para a dor e acelerar a recuperação de pacientes, reduzindo as possíveis complicações e o tempo de internação hospitalar. Seu uso teve grande importância nos EUA nas últimas décadas e será essencial para reduzir os riscos de contaminação e otimizar as novas práticas adotadas pelas instituições de saúde.
É primordial que a retomada dos cuidados cirúrgicos e clínicos eletivos seja determinada e monitorada por um comitê de autoridades locais, líderes clínicos e administrações hospitalares para avaliar a prevalência viral local, as demandas cirúrgicas e capacidade do sistema de saúde, bem como o sucesso regional para “achatar a curva” de disseminação do vírus e ampliar a capacidade de testagem.
A pandemia da Covid-19 apresentou a todos desafios que pareciam intransponíveis e conflitos bioéticos antes não dimensionados. Porém, a comunidade científica, em um esforço uníssono, desenvolveu uma acentuada curva de aprendizado que hoje nos permite equacionar os esforços coletivos no combate à pandemia, com a manutenção da saúde global dos pacientes, para além da Covid-19, em segurança e preservando a qualidade de vida de pacientes e profissionais de saúde.
*Maurício Abrão é Professor Associado do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Membro do Comitê Executivo da AAGL (principal Sociedade Mundial de Cirurgia Ginecológica) e Gestor do Serviço de Ginecologia Avançada do Hospital BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.