Biologia Molecular deu um novo olhar sobre o câncer
Por Simone Bonecker
Há mais de uma década estudando câncer eu tive a oportunidade de acompanhar mudanças notórias no curso da doença: melhora no diagnóstico, no tratamento e na qualidade de vida dos pacientes.
Venho da pesquisa e trabalhei por anos em laboratório de diagnóstico, e o que mais me chamou a atenção foi perceber o quanto avançamos em pouco tempo, em termos de conhecimento gerado acerca de uma doença e o impacto no paciente.
Não há dúvida de que as técnicas de biologia molecular revolucionaram nossa compreensão básica do câncer humano. Esta, permitiu ver o que e onde nenhuma outra metodologia via, dando luz a novos conceitos e ressignificando o que sabíamos. A Biologia Molecular deu um novo olhar sobre o câncer.
O câncer engloba um conjunto de mais de cem doenças que têm em comum o crescimento descontrolado de células. Este é nomeado de acordo com a origem embrionária dos tecidos que o derivam.
Além do tipo histológico, acrescenta-se a topografia. Por exemplo, o câncer de pulmão é classificado em dois grandes grupos: os carcinomas de células pequenas e os carcinomas de células não-pequenas. Dentro do segundo grupo, estão incluídos: (i) o adenocarcinoma, (ii) o carcinoma de células escamosas, (iii) o carcinoma de grandes células e (iv) os carcinomas neuroendócrinos.
Porém, dizer que o paciente tem um adenocarcinoma de pulmão diz muito pouco sobre a doença que lhe afeta e principalmente, sobre quais tratamentos são mais indicados. Isso porque nos últimos anos, o diagnóstico tem sido feito cada vez mais com base molecular, através da busca de mutações responsáveis pelo crescimento descontrolado das células, direcionando assim o tratamento. Logo, o ideal é a caracterização do tipo histológico com suas alterações moleculares presentes no tumor.
Alguns tumores foram reclassificados, sendo incluído o perfil molecular.
Muitos tumores foram subdivididos em diferentes subgrupos moleculares e desde então, o câncer tem “nome e sobrenome”, uns com “nome do meio” inclusive.
Um tumor que antigamente era conhecido como câncer de pulmão, hoje foi subclassificado com relação a presença de mutações no gene do receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR) e é conhecido como adenocarcinoma de células não-pequenas com mutação no gene EGFR. Outros podem apresentar mutações no gene MET, translocações envolvendo o gene ALK e assim por diante.
Mas a pergunta que fica é: dar “sobrenome” ao câncer é suficiente para melhor caracterizá-lo ou é necessário renomeá-lo? Uma nomenclatura baseada no perfil molecular, mais do que descrever melhor a doença, retira barreiras na evolução do conhecimento e do tratamento gerada pela nomenclatura baseada no órgão de origem.
Com as descobertas de que algumas mutações são “responsáveis” pelo desenvolvimento dos tumores, as indústrias farmacêuticas começaram a desenvolver fármacos que têm como alvo a proteína alterada presente nessas células tumorais. Para ter os medicamentos aprovados, os ensaios clínicos têm que ser conduzidos para um tipo de câncer específico, câncer de mama, pulmão, ovário e assim por diante e essa é uma das barreiras da nomenclatura atual.
Um limitador que impactou e impacta centenas de milhares de pacientes oncológicos.
Por exemplo, em 2005 estudos mostraram que células com mutação nos genes BRCA 1 /2 poderiam ser mortas com o uso de inibidores de PARP (uma proteína importante nas vias de reparo do DNA, especialmente o reparo por excisão de bases). Quatro anos depois, foi conduzido ensaios clínicos para testar Olaparib, um tipo de inibidor de PARP, em pacientes com câncer de ovário. Em 2014, esse medicamento foi aprovado, no entanto, essa mutação não é exclusiva de pacientes com câncer de ovário, ela também está presente no câncer de mama, próstata, pâncreas e outros, que foram privados por anos desse tratamento, por não terem sido incluído no ensaio clínico, uma vez que esse era específico para um tipo tumoral. Os ensaios clínicos para os outros tipos foram realizados sequencialmente.
Se o ensaio clínico fosse realizado em pacientes oncológicos com mutação nos genes BRCA 1 / 2, ou seja, independe da origem tecidual do tumor, aproximadamente 100.000 pacientes com câncer de mama poderiam ter sido beneficiados (2014 – 2018), uma vez que o Olaparib foi aprovado para este tipo de tumor em 2018 e 200.000 pacientes que morreram com câncer de próstata e pâncreas (2014 – 2020) talvez tivessem um desfecho melhor. O Olaparib foi aprovado só seis anos depois para esses dois tipos tumorais.
A nomenclatura baseada na molécula talvez facilitasse o tratamento de cânceres metastáticos (aqueles que se espalharem para além do órgão onde se originaram), que são responsáveis por cerca de 67-90% das mortes por câncer.
Esses tumores são quase sempre tratados com medicamentos que entram na corrente sanguínea e poderiam ser beneficiados por tratamentos alvo-específicos.
Além do impacto no tratamento, outra barreira está na forma em que esses tumores são estudados dentro da faculdade, residência e sociedades médicas, segmentado pela nomenclatura baseada no órgão de origem.
A oncologia é subdividida em múltiplas subespecialidades, assim como os hospitais e enfermarias que tem setores para câncer de mama, câncer de pulmão e assim por diante. O mesmo é verdade para os centros de pesquisas, que muitas vezes tem pesquisadores especializados por tipo de tumor, indo contra o entendimento científico que agora emerge. Repensar a segmentação da Oncologia dentro das instituições de ensino, talvez auxilie também na atualização dos profissionais de saúde sobre o tema.
Se a Biologia Celular e Molecular contribuiu com os esforços para caracterizar os tumores a nível celular e molecular, mostrando que alguns dos eventos moleculares que impulsionam a sua evolução são partilhados entre diferentes “tipos” de câncer, como é o caso das mutações em BRCA 1 / 2, ou no gene supressor tumoral TP53, presente em mais de 70% dos tumores, segmentar a pesquisa e o conhecimento por órgão de origem é um limitador.
Repensar como estudaremos o câncer, tendo como norte o novo olhar que foi dado pela Biologia Molecular pode ser um caminho para melhor compreender a sua complexidade e tratá-lo de forma mais eficiente, visando sempre a saúde e qualidade de vida do paciente e da população.
*Simone Bonecker é fundadora e Diretora Científica do IPEDMOL – Instituto de Pesquisa e Ensino no Diagnóstico Molecular.