“Tem que falar com o jurídico”. O que é a mercantilização na saúde?
Por Silvio Guidi
“Tem que falar com o jurídico.” Essa é, sem dúvida, a frase que mais irrita os times do comercial e do marketing. É quase um aviso de que a criatividade vai ser podada ou que os planos serão engavetados, impactando diretamente nos novos negócios, nas metas e, claro, nos resultados das instituições.
Existem limites éticos para campanhas publicitárias, certo? Os prestadores de todos os setores econômicos precisam seguir o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Para o setor de saúde, o CDC é bem claro: publicidade não pode enganar. Ela deve informar o que é o serviço, para que serve, que tem um preço (sim, saúde custa), e que, mesmo o procedimento mais simples, traz riscos. Parece suficiente, não? Mas, na saúde, não é bem assim.
Há um fantasma que assombra a publicidade na saúde, chamado “mercantilização”. Por causa dele, a publicidade na área carrega um peso extra. Cada profissão de saúde tem em seu Código de Ética uma regra que proíbe a tal mercantilização, mas – surpresa! – nenhum deles explica exatamente o que isso significa. Pior, quando alguém ousa perguntar, quem responde finge que é óbvio, deixando um constrangimento no ar.
Mas não tem nada de óbvio nisso, e é bom desmistificar o assunto.
Primeiro, é possível para entender o que seria a mercantilização. Segundo, nas mãos dos Conselhos, o conceito vira um coringa, usado ao gosto do fiscal da vez, dependendo do quanto ele goste ou não da publicidade em questão.
O conceito de mercantilização é importante, porque serviços de saúde carregam riscos. E não é só o risco de “não funcionar”. Os riscos podem levar a resultados opostos ao esperado, prejudicando ao invés de ajudar a saúde do consumidor. Além disso, esses riscos variam de pessoa para pessoa. Por isso, saúde não é algo que se vende aleatoriamente. Antes de oferecer o serviço, é preciso avaliar se ele realmente será útil para o indivíduo.
No comércio em geral, o consumidor compra o que quer, até as maiores inutilidades, sem grandes preocupações. Já na saúde, vender algo inútil é expor o cliente a riscos desnecessários – e ele nem sempre sabe disso. Por isso, a oferta precisa ser cuidadosa, deixando claro que uma avaliação individual será feita antes de qualquer prestação.
Mas, será que dizer que o serviço é barato, fazer promoções ou criar anúncios criativos já é mercantilizar a saúde? Claro que não! Essas práticas incomodam porque, historicamente, saúde e publicidade não se misturavam. Mas os tempos mudaram. Com a digitalização e as redes sociais, fazer publicidade na saúde se tornou mais viável. E ser criativo nas estratégias de venda, por si só, não é mercantilizar. Na verdade, pode até ampliar o acesso à saúde.
A nova resolução do CFM (2.336/2023) é um belo exemplo. Ela flexibilizou várias restrições e abriu espaço para que médicos e empresas usem a publicidade para divulgar seus serviços e promover conhecimento médico. Outros Conselhos ainda estão presos a um modelo antigo, no qual a publicidade criativa é praticamente sinônimo de mercantilização.
Mas é importante alertar que essa noção mais subjetiva de mercantilização já não é mais aceita na nossa realidade. Vale lembrar o conteúdo da Lei da Liberdade Econômica, que já vigora há mais de cinco anos. Ela proíbe autuações e sanções, por parte dos Conselhos profissionais, baseadas em noções abstratas. E já viu como “mercantilização” pode se transformar em um conceito bem vago. Isso protege empresas de saúde que investem em publicidade criativa, mas responsável.
Mercantilização é sim assunto sério. Mas é muito sério, também, que ações publicitárias relevantes não sejam freadas de forma desnecessária, a partir de um conceito nebuloso e subjetivo de mercantilização. A publicidade responsável não é inimiga da ética – na verdade, ela pode ser uma aliada poderosa para democratizar o acesso à saúde e promover informações úteis à população.
*Silvio Guidi é sócio em SPLAW Advogados.