A falta de especialização e o crime de exercício ilegal da profissão
Por Marcela Freire
Recentemente, em março de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou dados alarmantes sobre o exercício ilegal da medicina no Brasil. De acordo com o CFM, nos últimos 12 anos, o país registrou quase dois casos por dia de exercício ilegal da medicina, com o Estado do Rio de Janeiro liderando em número de ocorrências. Em 2023, o Tribunal do Estado foi o que mais registrou processos relacionados a essa prática ilegal.
Muitos dos registros de ocorrência, entretanto, são feitos de forma equivocada, frequentemente confundindo médicos não especialistas com indivíduos praticando medicina de forma ilegal. Essa confusão evidencia a necessidade de uma maior clareza na definição e diferenciação entre falta de especialização e exercício ilegal da profissão médica.
Em abril de 2024 todo o país tomou conhecimento, através da rede televisiva e demais meios de comunicação, da prisão em flagrante de um médico por exercício ilegal da medicina no Pará. Alguns veículos de informação ainda utilizaram o título “exercício ilegal da psiquiatria”, visto que o mencionado médico não possuía Registro de Qualificação de Especialista (RQE) e atuava no âmbito da psiquiatria. O delegado responsável pelo caso pontuou que a prisão se fazia necessária para coibir a prática delituosa do exercício ilegal da medicina. Posteriormente, fora reconhecida a arbitrariedade da prisão, sendo o médico colocado em liberdade.
Considerando os inúmeros casos de registros e até mesmo de prisões equivocadas, é necessário discutir sobre a regulamentação profissional da medicina.
A Lei 3. 268/ 57, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e outras providências, estabelece em seu art. 17, os requisitos necessários para o exercício da medicina, e, a partir dele, o Conselho Federal de Medicina (CFM), emite resoluções e pareces tratando sobre o exercício da profissão em qualquer de seus ramos:
Art. 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade.
A Resolução CFM nº 1.627/2001 define o ato médico como todo procedimento técnico-profissional praticado por um médico legalmente habilitado, direcionado à promoção da saúde, prevenção de doenças, diagnóstico, tratamento ou reabilitação de enfermos.
A resolução especifica que tais atos são privativos de médicos formados em instituições reconhecidas e registrados no Conselho Regional de Medicina (CRM) de sua jurisdição. Ela destaca que o exercício dos atos médicos deve ser fundamentado em conhecimentos aceitos pela comunidade profissional, cientificamente embasados, e voltados para o bem-estar dos pacientes, sempre respeitando os limites legais, éticos e técnicos disponíveis.
A resolução também enfatiza que, embora a especialização possa aprimorar a capacidade de um médico em determinadas áreas, a formação médica básica e o registro no CRM são suficientes para o exercício da medicina em geral. Isso permite que médicos sem especialização possam atuar em diversos campos da medicina, desde que respeitem os princípios éticos e as limitações técnicas de sua formação.
A Resolução CFM nº 2.311/2022 regulamenta a prática da cirurgia robótica no Brasil, estabelecendo requisitos específicos para que médicos possam realizar este tipo de procedimento. Segundo a resolução, a cirurgia robótica deve ser realizada exclusivamente por médicos com formação específica e treinamento adequado, visando garantir a segurança e a qualidade do atendimento aos pacientes.
A resolução determina que o médico responsável pela realização de cirurgias robóticas deve possuir certificação em cirurgia robótica, emitida por uma instituição reconhecida pelo CFM. Além disso, é necessário que o profissional tenha experiência comprovada em procedimentos cirúrgicos tradicionais na especialidade correspondente.
Portanto, enquanto a prática médica geral permite que médicos devidamente registrados no Conselho Regional de Medicina (CRM) atuem em diversas áreas, a cirurgia robótica é uma exceção que exige especialização e certificação específicas, conforme estabelecido pela Resolução CFM nº 2.311/2022.
O Parecer CFM nº 9/ 2016 reforça que a inscrição regular no CRM é suficiente para permitir que o médico atue em diversas áreas da medicina, e que a especialização é recomendada para garantir a qualidade do atendimento em áreas específicas, mas não é um requisito obrigatório para o exercício geral da profissão médica. Nesse mesmo sentido são os pareceres do CFM mencionados a seguir.
O Parecer CFM nº 21/2017 aborda a questão da fiscalização do exercício da medicina e reitera que qualquer médico registrado no CRM pode exercer a profissão, inclusive em áreas onde não possui especialização formal, desde que não exceda suas competências e habilidades profissionais.
O Parecer CFM nº 21/2019 explora a atuação de médicos em diferentes especialidades e reafirma que, enquanto o médico estiver devidamente registrado no CRM, ele está autorizado a atuar em qualquer ramo da medicina, desde que siga os princípios éticos e os limites de sua formação e experiência .
O Parecer CFM nº 21/10 aborda a questão da atuação dos médicos em áreas onde não possuem especialização específica. Ele conclui que, desde que o médico esteja devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina (CRM), ele está apto a exercer legalmente a medicina em qualquer de seus ramos ou especialidades. O parecer reforça que o anúncio de especialidade médica só pode ser realizado após o efetivo registro de qualificação do especialista no CRM .
O Parecer CFM nº 17/04, emitido pelo conselheiro Solimar Pinheiro da Silva, esclarece que os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) não exigem que um médico seja especialista para trabalhar em qualquer ramo da medicina. O parecer afirma que um médico devidamente registrado pode exercer a medicina em sua plenitude nas mais diversas áreas, desde que se responsabilize por seus atos.
Considerando o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM), suas resoluções e pareceres, não há dúvidas de que um médico devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina (CRM) de seu estado pode praticar todos os atos médicos existentes, independentemente de especialização, desde que respeite suas limitações técnicas e os princípios éticos.
A única exceção existente está prevista na prática de um ato médico por um médico que não tenha expertise técnica específica em uma área não configura exercício ilegal da medicina, mas pode ser considerada imperícia, que, nesse contexto, refere-se à falta de habilidade técnica ou conhecimento necessário para a execução adequada de um procedimento médico, o que pode levar a consequências legais e éticas para o profissional.
Portanto, só se pode falar em prática de exercício ilegal da medicina quando o sujeito ativo do crime que pratica ato médico é um profissional não médico. Um médico devidamente inscrito no CRM, mesmo sem ser especialista, não comete o crime de exercício ilegal da medicina; nesse caso, como dito, a questão seria de imperícia, e não de exercício ilegal da profissão.
Considerando a nova resolução de publicidade médica do CFM de 2024 (Resolução CFM nº 2.317/2024), um médico que não possui especialização não pode se declarar especialista, sob risco de responder por falta ética. Isso significa que ele não pode se identificar como especialista nem fazer publicações exclusivas sobre essa área em suas redes sociais.
Além disso, se o médico possui uma pós-graduação e deseja divulgar essa informação em suas redes sociais, ele deve incluir ao lado do termo “pós-graduado em …” a expressão “NÃO ESPECIALISTA”, em caixa alta, para deixar claro que a qualificação não implica em especialização. Ex.: “Pós- graduado em Dermatologia – NÃO ESPECIALISTA”.
Considerando a diferenciação entre a falta de especialização e a prática ilegal da medicina, médicos devidamente inscritos no CRM estão autorizados a exercer a medicina em todas as suas áreas, observadas a exceção da cirurgia robótica, suas limitações técnicas e os aspectos ético-profissionais. Essa distinção é crucial para evitar confusões e injustiças no julgamento de tais situações, garantindo que apenas indivíduos não médicos sejam penalizados por praticar ilegalmente a medicina.
*Marcela Freire é Advogada atuante em Direito Médico e da Saúde. Vice- Presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/ Duque de Caxias e Conselheira no Conselho Municipal de Saúde de Duque de Caxias.