Medicina da família: enxergando para além do muro
Você sabe o que é equidade? Costuma-se ilustrar esse conceito com a seguinte imagem: três garotos, de alturas diferentes, tentam assistir a uma partida de futebol, mas têm sua visão bloqueada por um muro. Para resolver o problema, eles decidem subir em alguns caixotes. Se todos usarem caixotes iguais, os dois mais baixos continuarão com dificuldade para enxergar o jogo. Porém, se subirem caixotes de tamanhos diferentes, de acordo com a altura de cada um, todos conseguirão ficar com a cabeça acima do muro e poderão, enfim, assistir à partida.
A lição que se tira da anedota é bastante clara: se tratarmos igualmente pessoas que têm necessidades diversas, preservamos injustiças. É preciso, pelo contrário, atender cada um de acordo com suas demandas específicas. Isso é equidade. A construção de uma sociedade melhor e mais justa precisa levar em conta o fato de que indivíduos e comunidades desiguais precisam, por óbvio, de tratamentos e políticas públicas também diversas. Equidade é, portanto, um meio, um caminho para a promoção da (verdadeira) igualdade.
Mas o que isso tem a ver com medicina de família? Voltando à alegoria dos três garotos, creio que esse campo da saúde desempenha, figurativamente, o papel dos caixotes: trata-se de uma ferramenta de promoção da equidade.
É premissa da medicina de família e comunidade que não se trata um paciente sem entender suas circunstâncias sociais, econômicas, culturais e pessoais. Indivíduos com e sem acesso a saneamento básico demandam os mesmos cuidados? É possível tratar doenças crônicas sem conhecer os hábitos alimentares e o grau de sedentarismo de um paciente? Deve-se receitar uma medicação sem levar em conta a renda de cada um? O histórico de doenças na família é irrelevante em um atendimento médico? As respostas parecem bastante óbvias.
Se é verdade que cada paciente tem demandas específicas, ditadas por suas condições de vida, a medicina de família e comunidade conta com um conjunto de técnicas que permitem mapear essas demandas. Essa é (ou deveria ser) uma das áreas mais centrais da medicina, pois ela permite organizar e orientar a atuação de todos os demais médicos especialistas.
Mais decisivo ainda é o papel desse campo na prevenção de doenças. O conhecimento da rotina de famílias e comunidades inteiras permite traçar desde estratégias individuais, com a introdução gradual de hábitos saudáveis no cotidiano de cada paciente, até estratégias amplas de saúde pública, capazes de reduzir drasticamente os casos de doenças crônicas como obesidade e diabetes, além de aliviar a pressão sobre a rede hospitalar.
O país tem muito a ganhar se passar a tratar a medicina de família e comunidade como prioritária. Com a noção de equidade mais disseminada na área da saúde, estaremos ajudando cada vez mais brasileiros a enxergar para além do muro.
*Artur Gonçalves Machado é Médico de Família e Comunidade na ViBe Saúde.