Disclosure na Saúde: comunicação aberta de eventos adversos
Bem além de rotina nos consultórios, intervenções cirúrgicas e procedimentos realizados no ambiente hospitalar, a relação entre médico e paciente passa por temas subjetivos, como o disclosure: uma abordagem integral para as organizações de saúde lidarem com eventos adversos durante tratamentos ou procedimentos. O objetivo desta ferramenta é auxiliar na compreensão das informações, na reparação dos danos causados aos pacientes e familiares, e no alívio para ambos os lados, quando ocorrem imprevistos.
A confiabilidade entre os sistemas de saúde e seus protagonistas, de um lado, e, do outro, quem está recebendo a assistência é assunto do segundo livro da pesquisadora Aline Albuquerque, advogada da União, pós-doutora em Direito Humano à Saúde pela Universidade de Essex,, Doutora em Bioética diretora da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente. O livro decorreu da sua última pesquisa na Universidade Erasmus, Países Baixos.
Pioneiro no Brasil, Disclosure na Saúde: comunicação aberta de eventos adversos (Editora Dialética) traz em sua abordagem multidimensional aspectos jurídicos, éticos, de gestão e relacionados à empatia para as organizações de saúde, com a finalidade de dar suporte através de uma equipe que atua nas áreas do Direito, da Psicologia e da Saúde, proporcionando maior acolhimento para os atingidos pelos danos e também para os profissionais envolvidos nestas ações.
No livro, Aline, que é também coordenadora geral do Observatório Direitos do Paciente do PPG Bioética/UnB, membro do Comitê de Bioética do Grupo Hospitalar Conceição e membro do Conselho Diretivo da Rede Bioética Latino-Americana, da Unesco, destaca a necessidade de uma cultura de transparência e comunicação aberta no sistema de saúde, evidenciando a importância do disclosure na restauração da confiança entre pacientes, familiares e profissionais de saúde.
“Sabemos que lidar com eventos adversos na saúde pode ser uma experiência emocionalmente desafiadora para todas as partes envolvidas. É crucial promover uma cultura de transparência e comunicação aberta no sistema de saúde. O disclosure desempenha um papel fundamental nesse processo”, pontua a autora do livro.
Personagem da urgência e da prioridade do disclosure no Brasil, Jaqueline Batista Pereira Silva, que faz parte da Associação Nacional de Vítimas de Erros Médicos, conta que o hospital onde o filho nasceu jamais comunicou a ela e ao marido informações corretas, exatas, sobre o incidente de segurança; as causas verdadeiras e por que do evento danoso no parto. “Eles buscaram esconder o que aconteceu e nós tivemos que procurar nos mecanismos da justiça a reparação e a garantia de assistência ao Jonathan. Ele não falava, andava, corria, não tinha coordenação motora. Eu tinha várias dúvidas sobre a audição e visão dele. Foram muitos tratamentos em distintas áreas, chegando a 23 profissionais que o assistiam. Passamos anos lutando contra o hospital no poder judiciário. E, embora houvesse uma medida cautelar que impunha o hospital a assistência ao Jonathan, eles jamais cumpriram essa liminar”, conta ela, que perdeu o filho aos sete anos, por uma negligência médica cometida no momento do parto.
O papel do disclosure e a realidade brasileira
Ele não apenas garante o direito à informação dos pacientes, mas também ao direito de acesso ao prontuário, à reparação integral e à confidencialidade das informações pessoais. No entanto, a prática ainda não é amplamente difundida no Brasil e muitas organizações de saúde relutam em implementá-la devido a preocupações com possíveis processos judiciais.
“Os pacientes têm direitos que precisam ser respeitados, independentemente do contexto de cuidado de saúde em que se encontram. O disclosure não precisa estar aliado à reparação financeira, que se faz muito importante, mas não deve condicionar a sua realização pela organização de saúde. Quando ocorre um dano, o paciente/familiar precisa e quer acolhimento, um pedido de desculpas, saber que o que aconteceu com ela seja uma medida para que não ocorra com outras pessoas. É ressignificar a dor para que outros episódios do mesmo tipo, não aconteçam”, reforça Aline Albuquerque.
No caso da Jaqueline, por exemplo, não houve a aferição dos parâmetros essenciais no momento do parto, como os Batimentos Cardíacos Fetais. Com isso, o bebê teve o chamado sofrimento fetal (hipóxia neonatal), quando o feto é privado a períodos sem oxigênio. O quadro evoluiu para encefalopatia, hipóxia isquêmica e paralisia cerebral.
“Nosso pequeno faleceu sem qualquer assistência da unidade hospitalar ou da equipe que era totalmente despreparada. Eles não fizeram a escuta de uma mãe, de todos os meus sintomas, tudo que eu estava sentindo naquele momento. Não houve o atendimento no momento preciso de forma a evitar o evento adverso. Era evitável se tivesse o monitoramento”, testemunha.
Eventos adversos em números
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que um a cada dez pacientes sofre algum dano ao receber cuidados hospitalares. Todos os anos, 134 milhões de eventos adversos ocorrem em hospitais de países de baixa e média renda, devido a cuidados em saúde inseguros, resultando em 2,6 milhões de mortes, segundo a Organização.
O disclosure, portanto, pode ser definido como um processo que envolve diálogo honesto, empático e oportuno entre pacientes e a equipe de profissionais de saúde após um incidente que afete a segurança do paciente. É um elemento-chave da resposta precoce e da investigação de incidentes de segurança do paciente. Para isso, é necessário contar com agentes que construam essa confiança em cadeia, como a equipe e os apoios que entram nessa equipe.
Segundo Aline, no Brasil, pouco se fala sobre o profissional de ligação, que faz a intermediação entre a organização e o paciente/familiar, mantendo contato e se disponibilizando para dúvidas, apoio, inclusive financeiro, e temáticas relacionadas.
“Geralmente ele costuma ser um assistente social/psicólogo. Temos também o líder do disclosure, um profissional que tem capacitação específica no assunto, já que é difícil contar com uma habilitação para toda a equipe, além do responsável pelo cuidado direto com o paciente, que construiu um vínculo com a família e o profissional diretamente envolvido no evento, que mesmo tendo suas complexidades, existe a recomendação na literatura internacional, de que participe desse processo e se posicione sobre o caso. É claro que isso pode ser transformado dada as reações da família, do médico e do paciente. Mas essa base é o que auxilia neste processo e pode auxiliar no disclosure”, detalha Aline.
Disclosure na Saúde: comunicação aberta de eventos adversos está organizado em sete capítulos que destacam: Modelos de Disclosure; Conceito/atores e etapas; Empatia; direito do paciente; Cultura Organizacional; Legislação Internacional; e o Disclosure no Brasil.