Quando o livre exercício da medicina não é universal
Por Paula Menezes e Flávia Lima
Ainda que a Organização Mundial da Saúde (OMS) se manifeste, ainda que a ciência comprove a ineficácia, ainda que os dados demonstrem o aumento de casos de intoxicação por medicamentos, o tratamento precoce para a Covid-19 continua em voga no Brasil.
O presidente da República defende, os conselhos de classe se calam, e a população sofre. Medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina são prescritos às custas do orçamento da saúde, enquanto as vacinas atrasam e, por consequência, a vida “normal” parece cada vez mais distante.
Sociedades médicas como a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Pneumologia de Tisiologia (SBPT) já se posicionaram contra o tratamento precoce, reforçando que não há tratamento farmacológico precoce da Covid-19 com eficácia e segurança comprovadas.
Grande parte da sociedade médica se mostra estupefata, mas o órgão que a representa e a controla em nível nacional, não. O Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu no ano passado o Parecer 4, onde delega ao médico o poder de escolha e prescrição, não importando se isso contraria evidências científicas ou coloca o paciente em risco. Ou seja, em nome da autonomia médica, a decisão de prescrever “kit covid” é direito do médico.
Dentre as absurdas justificativas para este ato, o CFM afirma que, estando as partes de acordo (médico e paciente), não lhe cabe nenhuma proibição ao livre exercício da medicina.
No entanto, aqui trazemos um contraponto. Há uma resolução editada pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (Resolução SS-SP n 83/2015), a qual dispõe que os médicos da rede pública estadual podem prescrever apenas medicações incorporadas ao SUS, sob pena de cobrarem o custo da dispensação “inadequada” à instituição a qual ele está vinculado (artigo 1º, parágrafo terceiro, da Resolução SS-SP n 83/2015).
É verdade que a resolução prevê uma possível justificativa e análise de exceções, o que, na prática, não ocorre. A medida, na verdade, tolhe o médico do livre exercício da medicina e do dever de não abandono do paciente, pois mesmo medicamentos com eficácia comprovada e indicação de uso autorizada pela Anvisa, se não incorporados pelo SUS, não podem ser prescritos.
O ex-secretário de Estado da Saúde, David Uip, declarou: “Hospitais do Estado que prescrevam o que não está combinado, o custo sairá do seu orçamento”. Para combinado, leia-se o que o Estado está disposto a fornecer. Mesmo que haja algum outro tratamento, comprovado e aprovado, com melhores benefícios ao paciente, se não estiver “combinado” que o Estado irá pagar, o médico não pode prescrevê-lo.
Os conselhos da classe médica, cientes dessa atrocidade, pois, se calam. Estamos diante de um claro impedimento à autonomia do médico, ora, uma autonomia impedida nesse caso, mas preconizada pelo CFM para apoiar a classe à prescrição de medicamento off-label no caso do tratamento precoce para Covid-19.
É no mínimo curiosa a postura do conselho, ao declarar e defender a liberdade de o médico escolher o melhor tratamento ao paciente no caso da Covid-19, mesmo que este seja sem respaldo científico, nem previsão em bula aprovada pela Anvisa, mas ignorar o fato de que o Estado de São Paulo proíbe os mesmos médicos de tratarem os pacientes com o que há de melhor, mais moderno, comprovado e autorizado no país, se não tiver sido incorporado ao SUS (leia-se, se o SUS não manifestar intenção de compra ou reembolso).
*Paula Menezes é advogada e pós-graduada em patient advocacy. É presidente da ABRAF desde 2014 e atuou como vice-presidente da Sociedade Latina de Hipertensão Pulmonar durante sete anos.
*Flávia Lima é jornalista, especialista em Saúde Coletiva pela Fiocruz Brasília e líder da ABRAF em Brasília.