Lígia Bahia analisa lobby das empresas de planos de saúde

Com a pressão das entidades de saúde coletiva e de defesa do consumidor, a votação da nova lei dos planos de saúde foi adiada para 2018. Mas a ameaça continua “posta na mesa”, como lembra a médica sanitarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lígia Bahia. “Esperamos que a população não tenha ainda mais restrições de acesso e uso de serviços de saúde do que as atuais”, enfatiza. Em entrevista, ela destaca que o lobby das empresas de planos de saúde no Poder Legislativo é “totalmente escancarado” e busca aprovar leis que favoreçam seus interesses e prejudiquem os consumidores. Segundo ela, com a recessão e a perda de clientes, houve uma nova investida desse setor financeiro para reduzir preços (“na realidade coberturas”) e preservar o mercado.

Uma das principais mudanças, apresentadas pelo relator do projeto de lei 7.419 de 2006, deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN), prevê a permissão para a venda de planos que não garantam coberturas mínimas obrigatórias. O plano poderá ofertar somente procedimentos mais baratos e disponíveis em determinada localidade. Também acaba a obrigatoriedade de atendimento de urgência e emergência para os planos ambulatoriais. De acordo com nota conjunta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), publicada em setembro de 2017, os planos com rol reduzido “representam risco óbvio à saúde e à vida de pacientes”, pois os problemas de saúde são “imprevisíveis”. Segundo as entidades, esse tipo de cobertura limitada também impõe problemas éticos e de responsabilidade aos médicos, que não terão à disposição os procedimentos necessários para salvar vidas.

Depois das críticas recebidas, o relator voltou atrás em uma das mudanças mais polêmicas: a possibilidade de parcelar, por até 20 anos, o reajuste nos planos que hoje é feito quando o consumidor completa 59 anos. Desde a aprovação do Estatuto do Idoso, em 2003, os planos são proibidos de aumentar seus valores para os clientes com mais de 60 anos — na prática, com o “parcelamento”, o aumento seria “diluído” após essa idade, como afirma a nota das entidades. De acordo com Lígia Bahia, o recuo só aconteceu porque “nós, entidades de saúde pública e defesa do consumidor, identificamos que esse era o ‘calcanhar de Aquiles’ do projeto”.

Mas as mudanças não param por aí: o novo texto do relator, divulgado em 11 de dezembro à Comissão Especial, propõe ainda reduzir o valor que as operadoras, por lei, devem restituir ao SUS quando seus clientes são atendidos na rede pública. “Com a redução do valor a ser ressarcido, o SUS perde ainda mais recursos justamente no momento de ajuste fiscal e de redução do financiamento público da saúde”, afirma a nota conjunta de Abrasco, Cebes e Idec. Outro ponto prevê ainda que os juízes sejam obrigados a ouvir uma “comissão de especialistas” para julgar disputas entre planos e consumidores — o que para Lígia Bahia tira a autonomia da Justiça. Também diminuem o valor das multas para as empresas de planos. Para a professora da UFRJ, essas propostas — que devem ser analisadas pela Câmara em 2018 — refletem os interesses empresariais presentes no Legislativo e no Ministério da Saúde, por meio da proposta do ministro Ricardo Barros em torno da criação dos chamados “planos populares” (Radis 175). E completa: “[Ricardo Barros] é o ministro que toda empresa gostaria de ‘chamar de seu’”.

Como as mudanças propostas para a lei dos planos de saúde vão afetar a população? Quais os principais pontos que estão em debate?
Esperamos que a população não tenha ainda mais restrições de acesso e uso de serviços de saúde do que as atuais. O projeto de lei que está em debate tem como pressuposto a aprovação da comercialização de planos de saúde com coberturas mínimas e pagamento direto sempre que houver qualquer tipo de atendimento. No sentido de evitar demandas, especialmente as que envolvem maiores custos, o projeto prevê implicitamente que procedimentos serão ou não incluídos como garantias contratuais. Além disso, explicita outros pontos: a não incorporação de novas tecnologias; a legitimação do não ressarcimento ao SUS (quase que propõe que o SUS se torne rede auxiliar das empresas) e tentou emplacar o aumento cumulativo dos valores das mensalidades para idosos.

Uma das mudanças prevê que, quando houver disputa na Justiça entre planos de saúde e consumidores, o juiz precisará ouvir uma “comissão de especialistas”. Como essa mudança pode dificultar o acesso a procedimentos e interferir na judicialização? 
A tentativa é conter a via judicial, que vem sendo cada vez mais acionada por clientes de planos, para obter acesso. Trata-se da busca de formalização da força de grandes grupos econômicos sobre o Poder Judiciário. Essa proposição, que fere a perspectiva da separação e autonomia dos poderes republicanos, não deveria sequer ser debatida no Legislativo. No entanto, transformou-se em agenda política graças à pressão empresarial.

Que interesses motivam essas mudanças na Lei dos Planos?
Parece que as motivações mudaram no período recente. A primeira investida das empresas de emplacar o plano mais barato ocorreu durante o contexto de crescimento da renda e formalização do emprego.  Essa segunda versão tem como mote justamente o argumento inverso: com a recessão e perda de clientes de planos, é preciso reduzir preços (na realidade coberturas) para preservar o mercado.

Uma das mudanças propostas, que dizia respeito à possibilidade de parcelamento por 20 anos do reajuste que hoje é feito quando o consumidor completa 59 anos, foi retirada do projeto. Segundo o relator, Rogério Marinho (PSDB-RN), não valia a pena manter o artigo “já que não está bom para ninguém”. Na sua avaliação, por que houve esse recuo?
Houve o recuo porque nós, entidades de saúde pública e defesa do consumidor, identificamos que esse era o “calcanhar de Aquiles” do projeto e, principalmente, em função da forte mobilização de entidades de aposentados. Além disso, havia divergências entre as empresas, que vieram à tona com a rejeição social à proposta.  Grandes empresas foram as formuladoras desse item do projeto e uma parte das menores se manifestou contrária.

Como as empresas de planos de saúde interferem no Poder Legislativo e na definição das políticas de saúde?
A atuação dos lobbies é totalmente escancarada. Vai desde a “marcação homem a deputado”, passa pela nomeação claramente negociada de nomes para agências reguladoras, copia e cola dos textos empresariais nos projetos apresentados e chega até a ameaças e confrontos com sanitaristas. Essa permissividade à atuação das empresas de planos de saúde empobrece o debate e termina no limite por enfraquecer o Poder Legislativo.

Desde que foi aprovada a lei que permitiu a entrada de capital estrangeiro na saúde (lei 13.097), em 2015, o que já mudou em relação ao mercado de planos e ao poder de barganha desses atores nas políticas de saúde?
A atuação do capital estrangeiro está presente em hospitais, farmácias e drogarias e instituições filantrópicas de ensino e assistenciais. O quadro atual do setor privado no sistema de saúde é bem distinto daquele do século 20. Estamos diante de agentes sociais que detêm enorme poder econômico e político e estão impondo uma agenda para a saúde no país que subordina o SUS às suas pretensões de expansão.

Entenda as mudanças propostas no projeto

  • Permissão para a segmentação assistencial: planos “acessíveis”, sem coberturas mínimas obrigatórias
  • Planos ambulatoriais e segmentados não serão obrigados a atender urgência e emergência
  • Diminuição do valor das multas: retira o piso mínimo de multa (de R$ 5 mil) e deixa a regulamentação para a ANS
  • Perda da autonomia judicial: juiz precisa ouvir “parecer profissional” para decidir sobre realização de procedimento
  • Alteração no ressarcimento ao SUS
Entrevista originalmente publicada na Revista Radis 185 / Luiz Felipe Stevanim

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