Uma análise da Lei do Piso Nacional da Enfermagem
Não é novidade que períodos eleitorais são especialmente propícios à edição de medidas populistas. Plantam-se mentiras doces no presente para se colherem verdades amargas no futuro. Tudo com olhos no sufrágio que virá, em detrimento das próximas gerações.
O regime democrático tem instrumentos e recursos para combater o populismo regulatório. Ao elaborar leis, sobretudo as de alto impacto econômico, o legislador deve observar o devido processo legislativo constitucional, que busca assegurar a racionalidade e legitimidade das normas jurídicas. Boas intenções não bastam. Há um passo a passo imposto pela Constituição, que não se resume a meras formalidades, mas assegura o próprio Estado Democrático de Direito.
Infelizmente, a edição da Lei do Piso Nacional da Enfermagem (Lei nº 14.434/2022 – “LPNE”), que institui um piso salarial para a categoria dos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras dos segmentos privado e público de todas as esferas da Federação, não observou o referido iter constitucional. Um conjunto de atropelos e um inusitado “jeitinho” na tramitação legislativa chamam a atenção.
De uma ótica substantiva, o devido processo constitucional veda que o legislador atue de forma irracional. No regime democrático brasileiro, não há margem para arbitrariedades nem voluntarismos. Por isso, o processo de elaboração das leis deve ser legítimo e justificado, mediante recurso a razões públicas, inclusive para que não se produzam normas desproporcionais e irrazoáveis.
Ocorre que, dessa perspectiva, há graves falhas de justificativa no processo de tramitação da Lei nº 14.434/2022. O legislador desconsiderou os custos e impactos da medida proposta em face de outros bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico.
Para o setor público, a norma – que determina o aumento automático da remuneração dos servidores públicos de todos os entes federativos e vincula a remuneração de carreiras públicas distintas entre si, em contrariedade ao art. 37, XIII, da CRFB – foi aprovada sem qualquer perspectiva de viabilidade orçamentária. Parece haver, tão-somente, a esperança etérea do legislador de que as fontes de custeio para as novas despesas públicas surgirão em algum momento no futuro (assumindo-se, portanto, que elas efetivamente não existem hoje). Sem apontar a fonte de custeio da LPNE, o legislador corre o risco de fazer cortesia com chapéu alheio – seja com recursos de outras rubricas do orçamento público federal, dos demais entes federativos ou da própria iniciativa privada.
Não é esse o tratamento constitucionalmente adequado para a questão: de acordo com os arts. 167, I e II, e 169, §1º da CRFB/88 e art. 113 do ADCT, antes de aumentar os gastos públicos, o legislador deve se preocupar com a viabilidade e a sustentabilidade da nova despesa, incluindo-a na estimativa da lei orçamentária ou prevendo medidas para a sua compensação. E isso por motivos óbvios: em matéria orçamentária, o cobertor é sempre curto. O aumento de despesas numa seara implica redução ou não aplicação de recursos públicos em outras tantas.
Tanto assim que o próprio Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desempenho (“DESID”), órgão técnico do Ministério da Saúde, apontou um impacto orçamentário “alto”, estimado num valor global de mais de R$ 22 bilhões, entre setor público e iniciativa privada, decorrente dos reflexos da norma sobre a remuneração de cerca de 2,7 milhões de profissionais. Formulou, por isso, uma série de ressalvas para a sanção presidencial, nenhuma das quais foi enfrentada pelo Poder Executivo.
Para o setor privado, incluindo as entidades sem fins lucrativos, os custos estimados também são altíssimos. Projeções de entidade especializada apontam para o impacto adicional na folha de pagamentos da ordem de 10,31% para as entidades sem fins lucrativos, e de 12,49% para as empresas privadas. Causa perplexidade que o legislador tampouco tenha procurado aferir a capacidade de absorção por esses agentes econômicos dos ônus criados pela LPNE, sem que daí decorram consequências indesejadas – como seriam a redução ou precarização de postos de trabalho, a redução do número de leitos hospitalares nas redes privadas e a própria sobrecarga do SUS e do erário. Afinal, grande parte dos serviços públicos de saúde é prestada por entidades privadas filantrópicas e sem fins lucrativos em regime complementar, como autoriza o §1º do art. 199 da Constituição. Essa conta impactará também o orçamento público.
O cenário é ainda mais grave porque sequer foram apresentadas formas de mitigação desta conta bilionária. Não se cogitou, ao menos, a criação de um regime de transição adequado para a implementação do piso pelos empregadores. Pretende-se que isso seja feito do dia para a noite, em um atentado contra a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima (art. 5º, caput, da CRFB, e art. 23 da LINDB).
Mas a inexequibilidade orçamentária e econômica não é o único vício da Lei nº 14.434/2022. De uma ótica formal, desde o início do processo legislativo, já eram claros os vícios do PL nº 2.564/2020, deflagrado pelo Senado. A uma, pela invasão da competência privativa do Chefe do Poder Executivo para iniciar projetos de lei em matérias diretamente relacionadas ao funcionamento da Administração Pública. A duas, pela violação ao pacto federativo, dado que a União usurpou a competência dos entes subnacionais para tratar do regime jurídico de seus servidores públicos.
E, dos atropelos, foi-se ao “jeitinho”: para tentar convalidar os vícios indicados (como se isso fosse possível), o Poder Legislativo sobrestou o envio do PL à sanção presidencial por mais de dois meses, em flagrante desconformidade com o Regimento Interno do próprio Congresso Nacional – que estabelece que os projetos definitivamente aprovados “serão enviados à sanção presidencial no prazo improrrogável de 10 (dez) dias” (art. 139). Fê-lo para que pudesse propor, votar e promulgar, nesse meio-tempo, a Emenda Constitucional nº 124/2022, editada para que o PL do piso salarial não fosse suspenso “pelos tribunais do País, sob o argumento de vício de iniciativa”. Ou seja, em uma lógica constitucional às avessas, alterou-se a Constituição para sanear o vício originário de um PL.
Promulgada sob essas condições, a própria EC merece ressalvas: não bastasse ter sido gestada para salvar um PL reconhecidamente viciado, ela é marcada por um ímpeto de centralização, na União, de competências típicas dos entes federativos em matéria de servidor público. Por isso, fragiliza o princípio federativo (art. 60, §4º, I, da CRFB), ao tempo em que engessa e põe em risco a gestão do serviço público de saúde pelos entes subnacionais. Basta lembrar que também a EC nº 124/2022 veio desacompanhada de reflexões sobre a viabilidade fática, jurídica e econômica da instituição de um piso remuneratório uniforme para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira em toda a Administração Pública, e tampouco previu qualquer tipo de mecanismo compensatório dos novos encargos que impõem aos entes federativos.
Pouco após a promulgação da LPNE, a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços – CNSAÚDE ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.222. Já era de se esperar. No Brasil atual, quase tudo acaba no Supremo, para o bem ou para o mal. Nesse caso, era isso mesmo o que deveria acontecer.
*Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).