O impacto da judicialização na prática médica e sistema de saúde

Por Sérgio Lima de Almeida

A judicialização da saúde é, por definição, um reflexo da busca pelo cumprimento de um direito fundamental. No entanto, o crescimento exponencial desse fenômeno no Brasil exige uma análise crítica e técnica, sobretudo do ponto de vista médico. Mais do que uma questão jurídica, estamos diante de um desafio de saúde pública que, se não enfrentado com responsabilidade e base científica, pode comprometer a eficácia terapêutica, a autonomia profissional, a alocação racional de recursos e, sobretudo, a segurança dos pacientes.

Dados recentes, levantados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indicam a existência de mais de 573 mil processos judiciais relacionados à saúde em tramitação. O número já supera o total de médicos registrados no país, e o crescimento de 198% nas ações de primeira instância ao longo dos últimos nove anos revela uma banalização preocupante. O impacto é direto sobre o cotidiano de profissionais e instituições que precisam lidar com demandas nem sempre pautadas em evidência científica.

Nesse contexto, é preciso reafirmar: judicializar não pode ser o caminho padrão para a obtenção de tratamentos experimentais, off-label ou sem registro regulatório. O caso emblemático da fosfoetanolamina sintética, popularmente chamada de “pílula do câncer”, ilustra com clareza os riscos dessa distorção. A substância foi amplamente judicializada por pacientes e familiares, apesar da ausência de estudos clínicos robustos e de autorização da Anvisa. Tempos depois, o Supremo Tribunal Federal declarou a lei que liberava seu uso como inconstitucional. Além da ineficácia comprovada, o episódio expôs pacientes a falsas esperanças e retirou o foco de condutas terapêuticas validadas, ferindo o princípio da beneficência que rege a prática médica.

Esse tipo de decisão, ainda que movida pela empatia do Judiciário, pode ter efeitos deletérios. A substituição da avaliação clínica individualizada por uma ordem judicial compromete o julgamento médico e desloca o risco terapêutico para fora dos parâmetros éticos e técnicos estabelecidos. O médico, nesse cenário, se vê obrigado a administrar tratamentos cujo benefício é duvidoso, muitas vezes contra as melhores práticas reconhecidas pela comunidade científica.

O papel do e-NatJus e das Notas Técnicas Científicas

Avançamos, felizmente, em mecanismos que buscam qualificar esse debate. O Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) e o e-NatJus (Núcleo de Apoio Técnico ao Judiciário) vêm promovendo o uso de pareceres técnicos para embasar decisões. As notas técnicas emitidas por especialistas dos NatJus auxiliam magistrados a diferenciar o que é demanda legítima do que é pressão emocional ou marketing pseudocientífico.

Contudo, ainda há um abismo entre o conhecimento médico e a tomada de decisão judicial. A judicialização não deve ignorar os princípios da farmacovigilância, da medicina baseada em evidências e das diretrizes clínicas, sob pena de gerar iniquidade no sistema de saúde. Recursos escassos acabam destinados a tratamentos de baixa eficácia ou fora dos protocolos, enquanto outras demandas, potencialmente mais benéficas, ficam desassistidas.

Um espaço de diálogo técnico entre Saúde e Justiça

Foi nesse cenário que nasceu o evento “O Direito e a Saúde – Repensando a Judicialização”, que neste ano chegou à sua terceira edição. Único no Brasil a reunir de forma estruturada médicos, magistrados, gestores públicos e privados, representantes de planos de saúde e agências reguladoras, o evento tem sido um catalisador de mudanças. Nossa proposta não é combater a judicialização, mas sua banalização — garantindo que ela se mantenha como um instrumento legítimo para correção de falhas do sistema, e não como atalho institucionalizado.

A edição mais recente contou com o apoio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) e trouxe à tona projetos concretos, como o Projeto Quero-Quero, que eliminou a judicialização de cirurgias cardiovasculares no Hospital SOS Cárdio, graças a fluxos pactuados com operadoras e baseados em evidência científica. O projeto, premiado nacionalmente pelo CNJ, demonstra que é possível reduzir o conflito judicial sem abrir mão da qualidade do cuidado.

A esperança, sim — mas com ciência

O STF foi claro ao declarar a inconstitucionalidade da Lei da fosfoetanolamina: “A esperança que a sociedade deposita nos medicamentos, sobretudo aqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência”. Essa mensagem deve ecoar entre todos os que atuam na Saúde. A responsabilidade sobre o que é oferecido ao paciente não pode se dissociar dos critérios técnicos de segurança, eficácia e custo-efetividade.

A judicialização da saúde, quando desprovida desse lastro científico, transforma o sistema em um campo de batalha emocional, onde a decisão clínica é substituída por sentenças que nem sempre consideram as consequências a longo prazo. O resultado pode ser a fragmentação da assistência, o colapso orçamentário e, pior, o adoecimento do próprio sistema de saúde.

Que o futuro da judicialização seja guiado pelo equilíbrio entre o direito e a ciência. Só assim conseguiremos proteger não apenas o acesso, mas também a qualidade, a segurança e a sustentabilidade do cuidado médico no Brasil.


*Sérgio Lima de Almeida é Cirurgião cardiovascular e idealizador do evento “O Direito e a Saúde – Repensando a Judicialização”.

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