O poder da interoperabilidade para a agilidade no cuidado oncológico
Por Maira Caleffi
A fragmentação informacional entre o sistema público e o setor privado de saúde no Brasil continua sendo um dos maiores entraves para a equidade no cuidado oncológico. No câncer de mama, essa desconexão se manifesta de forma contundente: informações que poderiam orientar políticas, agilizar diagnósticos e reduzir desigualdades acabam dispersas em sistemas que não se comunicam. No Rio Grande do Sul, o cenário é exemplar desse desafio e, ao mesmo tempo, um campo fértil para a inovação. Segundo o Boletim Epidemiológico do Câncer de Mama 2024 da Secretaria Estadual da Saúde, o Estado registrou 5.038 novos casos de câncer de mama em 2023, o equivalente a uma taxa de 89,53 casos por 100 mil mulheres. Embora o número de novos casos tenha caído levemente em relação a 2022, com redução de 1,6%, a mortalidade manteve-se elevada: cerca de 1.500 mulheres perderam a vida em 2023.
Esses números evidenciam um paradoxo: o Rio Grande do Sul dispõe de uma das redes mais estruturadas do país para rastreamento e tratamento oncológico, mas ainda não traduz plenamente essa estrutura em resultados proporcionais. A questão não está apenas na realização dos exames, mas no que é feito com os resultados que eles produzem. Em 2022, o Estado realizou 298.624 mamografias de rastreamento pelo SUS, número expressivo e compatível com uma rede organizada de atenção. No entanto, a qualidade informacional desses exames ainda é uma preocupação. Um estudo realizado no sul do Estado, analisando dados de uma década (2013–2023), mostrou que apenas 12,9% das mamografias seguiram rigorosamente os critérios de faixa etária e periodicidade recomendados. Embora 63,3% dos exames tenham sido realizados em mulheres de 50 a 69 anos — público-alvo do rastreamento recomendado pelo Ministério da Saúde —, somente 18,3% respeitaram a periodicidade adequada de dois em dois anos.
Essas lacunas não são meramente estatísticas: elas representam a ausência de um fluxo contínuo de informação entre o que se realiza e o que se aprende. Exames existem, mas não necessariamente se traduzem em inteligência de gestão. A ausência de interoperabilidade faz com que cada sistema, hospital ou rede opere dentro de sua própria bolha informacional, sem visão integrada da jornada da paciente.
O Rio Grande do Sul já possui iniciativas estruturantes que podem pavimentar o caminho para uma virada. O Estado aderiu à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma oficial do Ministério da Saúde para integração de informações assistenciais, por meio do IntegraRS, um portal desenvolvido pelo governo estadual, que busca consolidar a governança dos dados públicos. Ao conectar os dados das duas plataformas, é possível criar, por exemplo, um histórico clínico unificado do paciente, melhorando o cuidado e facilitando o acesso às informações. Também foi sancionada, em 2024, a Lei nº 16.151, que institui o Programa Estadual de Navegação de Pacientes com Neoplasia Maligna de Mama, voltado a acompanhar a trajetória das pacientes desde a suspeita até o tratamento, ainda em fase de implementação.
Essas são bases promissoras, mas ainda insuficientes se permanecerem isoladas do setor privado e dos prestadores conveniados. No campo da oncologia, especialmente, a transição entre sistemas é frequente: muitas mulheres realizam exames particulares e buscam tratamento no SUS, ou o contrário. Quando os dados desses percursos não dialogam, perde-se não apenas eficiência administrativa, mas vidas.
A interoperabilidade, portanto, não é um luxo tecnológico, é um requisito ético e estratégico. Ela garante rastreabilidade da jornada da paciente, reduz duplicidades, melhora a alocação de recursos e, sobretudo, permite que decisões clínicas e de gestão se baseiem em evidências completas. Não se trata de quebrar sigilos, mas de construir confiança e transparência sob a proteção da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Para consolidar esse avanço, é indispensável uma governança compartilhada de dados, com responsabilidades claras entre Ministério da Saúde, secretarias estaduais, hospitais públicos e privados. Também é urgente que metas de interoperabilidade passem a compor os indicadores de desempenho das redes assistenciais e que o financiamento público reconheça e premie quem entrega qualidade de registro e integração.
A experiência gaúcha mostra que a base técnica existe, mas o uso estratégico ainda é incipiente. Transformar dados dispersos em inteligência requer não apenas sistemas que conversem, mas também uma cultura de colaboração, em que o público e o privado entendam que a informação é patrimônio coletivo e instrumento de saúde pública.
Se queremos reduzir desigualdades e elevar a eficácia do cuidado oncológico no Brasil, precisamos transformar a interoperabilidade em política de Estado. Só assim conseguiremos alinhar tecnologia, gestão e humanidade, garantindo que cada dado gerado no sistema de saúde se traduza em um passo concreto na direção certa: salvar vidas.
*Maira Caleffi é mastologista e Presidente do Conselho do Instituto de Governança e Controle do Câncer – IGCC.