O médico infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha não está muito otimista em relação ao controle das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti no curto prazo no país. “Enquanto continuarmos utilizando as mesmas ferramentas que utilizávamos há 100 anos, continuaremos vivenciando epidemias de dengue, zika e chikungunya, muito provavelmente”, afirmou o professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e Coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz. As estratégias consideradas antiquadas pelo pesquisador envolvem uma ação e uma omissão. A ação: continuar a tentar combater o mosquito casa a casa em um cenário urbano cada vez mais populoso e desordenado; a omissão: não interferir com políticas públicas eficazes nos determinantes sociais das doenças nesses cenários, principalmente a falta de coleta de lixo e de oferta de água regulares e adequadas. De positivo, ele lembra o acúmulo de conhecimento científico e a contribuição histórica que os profissionais pioneiros no tratamento e pesquisa deram para as ciências da saúde, uma das maiores do mundo nos últimos tempos. “Só teremos a real magnitude dessa contribuição daqui a décadas”, afirmou o especialista na entrevista que concedeu à Radis.
Em 2016, o Brasil viveu a sua primeira grande epidemia de zika, que teve como um dos efeitos mais graves o nascimento de bebês com microcefalia. De lá para cá, o país está mais preparado para enfrentar algo parecido?
Enquanto não houver uma mudança na tecnologia que está disponível para o controle do Aedes aegypti, continuaremos tendo essas epidemias das doenças transmitidas pelo mosquito nas próximas décadas. Em 2018, empregamos exatamente as mesmas tecnologias de 1903, 1905, mais de um século atrás. A estratégia já era a de tentar destruir os focos do mosquito casa a casa, com o equivalente aos inseticidas e larvicidas que temos hoje. O mundo mudou muito, o Brasil mudou muito, o meio ambiente mudou muito, mas a tecnologia utilizada é a mesma. Se tomarmos como exemplo a dengue, somente o instrumental baseado no controle do mosquito não tem sido suficiente para impedir essas epidemias que nós temos observado nos últimos 30 anos. O mesmo vale para chikungunya e zika.
As equipes e os serviços de saúde estão preparados para fazer o diagnóstico e implementar precocemente o tratamento adequado aos pacientes?
Em relação à época da primeira epidemia de zika, há dois anos, houve um acúmulo de conhecimento. Agora temos profissionais experientes para lidar com a síndrome da zika congênita. Uma das grandes contribuições que a pesquisa científica brasileira deu para o mundo nas últimas décadas foi desvendar as alterações, a história natural da doença. Eu colocaria no mesmo patamar de importância do conhecimento sobre a Doença de Chagas, nas primeiras décadas do século 20. Nós temos um arsenal com kits para diagnóstico molecular e sorológico que não tínhamos em 2015 e 2016, um aporte diferenciado para enfrentamento de eventuais novos casos.
O senhor pode dar outros exemplos?
Já conhecemos de forma mais minuciosa e aprofundada boa parte das consequências da infecção pelo vírus da zika, podemos afirmar com razoável segurança que a microcefalia é apenas uma das consequências da infecção congênita pelo vírus zika, provavelmente a mais grave, mas não a única. Já sabemos que é possível ter consequências auditivas, motoras, cognitivas, oftalmológicas mesmo quando o perímetro cefálico é normal. Há aspectos positivos em termos de acúmulo de conhecimento. No entanto, as condições ambientais, macro, continuam as mesmas, se é que não pioraram.
É possível prever se teremos um novo surto de zika vírus?
Ainda não temos séries históricas no Brasil que nos permitam observar e fazer projeções sobre o comportamento do vírus ao longo dos anos. Com a dengue, devido ao acúmulo de séries históricas desde os primeiros episódios, há cerca de 30 anos, sabemos que a epidemia se alterna entre as regiões do país: um ano mais intensa no Centro-Oeste, em outro no Sudeste, e assim sucessivamente. Com a zika nós ainda não temos experiência acumulada. Se fizéssemos um paralelo pela similaridade do agente etiológico, o vírus zika é do mesmo gênero do vírus da dengue, é transmitido pelo mesmo mosquito, ocorrendo nas mesmas épocas do ano. É provável que essa ocorrência em ondas epidêmicas possa ocorrer também com a zika. Mas ainda não temos observações suficientes que nos permitam fazer essa afirmação.
Quais medidas podem ser tomadas para conter futuras epidemias das doenças transmitidas pelo Aedes?
Precisamos de uma nova ferramenta, e eu me refiro especificamente às pesquisas envolvendo a utilização da bactéria Wolbachia — que pode impedir o mosquito de ser infectado. Essa sim pode ser uma mudança de paradigma no controle do vetor. As pesquisas estão em andamento pelo projeto “Eliminar a Dengue”, com participação da Fiocruz. Esta é uma medida com forte inovação tecnológica, feita a partir da Saúde Pública, que poderia de fato mudar o rumo das séries históricas relacionadas às enfermidades transmitidas pelo Aedes. Sem esse tipo de abordagem inovadora, infelizmente, não acredito que haja medidas que possam impedir novas epidemias de dengue, zika e chikungunya.
Quais os problemas da estratégia tradicional de combate ao mosquito?
O Brasil tem um passivo ambiental gigantesco, com crescimento desordenado do espaço urbano, além de crescimento populacional desproporcional à oferta de instrumentos públicos. Por exemplo, o fornecimento de água para uso doméstico não acompanhou o ritmo de crescimento de novas comunidades. Na periferia dos centros urbanos de grande e de médio portes nós temos sérias deficiências no fornecimento regular de água para consumo doméstico, assim como na coleta de resíduos sólidos urbanos. Poucas doenças, como as transmitidas pelos vetores com características urbanas — principalmente o Aedes aegypti e o mosquito-palha, vetor da leishmaniose — têm determinantes sociais tão marcantes. Enquanto esses determinantes sociais não forem alterados, somente medidas de Saúde Pública não resolverão o problema.
De que modo os cortes orçamentários podem afetar a prevenção de doenças causadas pelo Aedes em 2018?
Eu não sou especialista em economia da saúde, mas o que nós temos observado no Brasil como um todo é que a recessão econômica diminuiu drasticamente a arrecadação dos estados. Ao diminuir a arrecadação, isso gera consequências na economia local, entre elas o desemprego. Com o desemprego maior, há um contingente de pessoas que fica no seu domicílio. O Aedes basicamente vive e procria no espaço doméstico. Se aumenta a população que permanece nos domicílios, durante o dia, evidentemente aumenta a chance de ser infectado. Mas os efeitos não param aí. Equipes de saúde, de atenção primária, de Estratégia Saúde da Família, estão sendo desativadas. O Rio de Janeiro é um exemplo de lugar onde isso vem acontecendo. Em alguns estados, hospitais foram fechados, há profissionais com os salários atrasados, unidades de saúde perdendo pessoal. Tudo isso tem impacto no diagnóstico precoce e nas orientações dos profissionais para as condutas com esses pacientes. A crise econômica impacta negativamente o controle da transmissão das doenças e o acesso ao tratamento. A relação pode não ser direta, mas em tese aumenta a população suscetível e reduz o acesso aos serviços de saúde. Além disso, há localidades em que o abastecimento de água e a coleta de resíduos sólidos também são afetados pela falta de recursos. Tudo isso são determinantes.
Entrevista originalmente publicada na Revista Radis 185 / Elisa Batalha