Inclusão digital e saúde trans: como a IA pode apoiar uma medicina mais equitativa
A tecnologia avança, mas os desafios da equidade na saúde permanecem. No campo da medicina ginecológica e reprodutiva, a inteligência artificial (IA) tem sido vista como uma aliada para ampliar diagnósticos e tratamentos personalizados. No entanto, para pessoas trans, o acesso à saúde ainda é permeado por estigmas, lacunas estruturais e exclusão digital — um cenário em que a IA pode tanto ajudar quanto aprofundar desigualdades.
“A inteligência artificial pode atuar como ferramenta de triagem, filtrando pacientes e direcionando-os a especialistas capacitados, inclusive no atendimento a pessoas trans”, explica Marise Samama, ginecologista e presidente da Associação Mulher Ciência e Reprodução Humana do Brasil (AMCR). Segundo ela, essa aplicação pode ser valiosa, desde que os profissionais envolvidos sejam qualificados e acolhedores.
Pessoas trans, especialmente homens trans com aparelho reprodutor feminino e mulheres trans em processos hormonais, ainda enfrentam dificuldades em acessar cuidados ginecológicos e reprodutivos adequados. A IA, nesse contexto, pode contribuir para mapear riscos e demandas, reduzindo barreiras logísticas e estruturais. “Já temos homens trans que congelam óvulos, engravidam, fazem acompanhamento. É preciso que esse atendimento exista e que seja feito com respeito e ciência”, afirma a médica.
Contudo, o acesso à tecnologia segue sendo um obstáculo. “A IA depende da inserção de dados. Se o paciente não tem acesso à tecnologia básica ou à educação digital, ele fica fora do sistema”, pontua Marise. Para ela, é fundamental que políticas públicas invistam em informatização, conectividade e letramento digital em regiões de maior vulnerabilidade.
Outro ponto de alerta está no risco de viés dos algoritmos. Se treinadas com dados excludentes ou enviesados, as ferramentas de IA podem reproduzir preconceitos históricos, como negligenciar variações anatômicas ou hormonais de pacientes trans. “A IA só é eficaz se alimentada com dados diversos, científicos e éticos. Caso contrário, ela reforça as falhas da medicina tradicional em vez de superá-las”, alerta.
Apesar das dificuldades, a especialista é otimista quanto ao potencial da tecnologia. “A IA pode sim ser uma aliada da inclusão, desde que desenvolvida com responsabilidade e aplicada por equipes treinadas. Ela deve facilitar o acesso, não ser mais uma barreira”, resume.
Na prática, a integração da IA ao cuidado de pessoas trans depende da construção de protocolos específicos, com atenção à linguagem, respeito à identidade de gênero e análise personalizada de dados clínicos. “Não podemos cair na armadilha da automatização desumanizada. A inteligência artificial precisa ser sensível às realidades que ainda desafiam a equidade no cuidado à saúde”, finaliza Marise.