Centro da USP investigará como o metabolismo “define a vida”
O Hospital Universitário da USP vai ganhar um novo parceiro — e um novo vizinho. Num espaço onde hoje funciona a marcenaria e um espaço de estacionamento do hospital, bem em frente à entrada de pacientes, será erguido um novo centro de pesquisas dedicado ao estudo do metabolismo, um dos temas mais importantes da biologia e da biomedicina modernas — fundamental na busca de novos tratamentos para doenças como câncer, diabetes e obesidade, entre muitas outras.
“Metabolismo é o conjunto de reações químicas que transformam moléculas dentro dos seres vivos. Na verdade, é o que define a vida”, resume a pesquisadora Alicia Kowaltowski, professora do Instituto de Química (IQ) da USP e coordenadora do projeto que dará ao origem ao novo Centro de Metabolismo (CoMeta) da Universidade.
Orçado em R$ 50 milhões, com dois andares e 2.500 metros quadrados de área construída, o centro vai reunir debaixo de um mesmo teto quatro grupos de pesquisa que já trabalham com metabolismo em diferentes unidades da USP; além de outros grupos que serão selecionados para se juntar à iniciativa no futuro. A construção deverá ter início nos próximos meses, logo que o projeto executivo da obra for aprovado.
Além do grupo de Alicia Kowaltowski, que trabalha com metabolismo da nutrição (estudando como o nosso organismo processa, utiliza e armazena a energia presente nos alimentos e os impactos disso na saúde), o CoMeta vai abrigar outros três grupos permanentes de pesquisa: do professor Ariel Silber, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, que estuda o metabolismo de parasitas patogênicos; da professora Sayuri Miyamoto, do Instituto de Química (IQ), que investiga o metabolismo de lipídeos; e da professora Marilia Seelaender, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), que pesquisa alterações metabólicas associadas ao câncer.

São linhas de pesquisa distintas, mas que têm o metabolismo como uma espinha dorsal comum. A ideia, segundo Alicia Kowaltowski, é produzir um ambiente de cooperação permanente e “efervescência intelectual”, acoplado a um parque tecnológico que permitirá conduzir pesquisas que vão “desde a molécula até o ser humano”, passando por experimentos com células in vitro e modelos animais. “É muito difícil um pesquisador ser capaz de fazer tudo isso sozinho, por isso que ter um centro com especialistas de vários tipos e níveis diferentes trabalhando juntos é muito interessante”, diz. “A gente já troca ideias e conversa bastante, mas não é a mesma coisa que estar debaixo do mesmo teto.”
“O principal motivo para estabelecimento do CoMeta é aproximar grupos afins em um ambiente propício, equipado com metodologia de ponta, para seu maior e melhor desenvolvimento, além de oferecer a pesquisadores de interesses diversos metodologias quantitativas de ponta para avaliações metabólicas”, diz a proposta de criação do centro, aprovada pela Reitoria da USP (que vai financiar o projeto) e pela Superintendência do HU (que vai abrigar o centro).
“Certamente será enriquecedor para todas as nossas linhas de pesquisa”, reforça Ariel Silber, vice-coordenador do CoMeta. Seu grupo de pesquisa, no Departamento de Parasitologia do ICB, estuda há décadas o metabolismo de parasitas dos gêneros Trypanosoma (causadores da doença de Chagas e doença do sono) e Leishmania (causadores da leishmaniose). “Compreender a biologia desses parasitas nos permite entender melhor como podemos combatê-los”, justifica Silber.
Um dos focos do laboratório é a identificação de processos metabólicos que sejam vitais para esses parasitas mas não para os mamíferos que eles infectam, com o intuito de desenvolver drogas capazes de interferir nesses processos e matar os invasores, sem prejudicar seus hospedeiros. “A maior parte dos antibióticos que a gente utiliza hoje são antibióticos que vêm surgindo, justamente, da exploração de fenômenos metabólicos diferenciais entre bactérias e seres humanos”, compara Silber.
Uma das diferenças metabólicas, no caso desses parasitas, é que eles utilizam aminoácidos como uma fonte primária de energia, em vez de carboidratos. Isso abre uma “janela de oportunidade para intervenção terapêutica”, que o laboratório já está investigando no ICB, e que ganhará ainda mais força com a transferência para o CoMeta, diz Silber. “Nosso objeto de estudo é completamente diferente [dos outros três grupos que vão compor o centro], mas os fundamentos teóricos e tecnológicos sobre os quais as nossas pesquisas se baseiam são compartilhados”, destaca o professor.
A parte translacional do centro — que buscará transferir os achados da pesquisa básica para aplicação médica — será coordenado pela professora Marilia Seelaender, de Departamento de Cirurgia da FMUSP. Seu grupo é especializado na pesquisa da caquexia, uma síndrome metabólica caracterizada pela perda de peso e fraqueza extremas, que acomete muitas pessoas com câncer. O objetivo central é entender porque alguns pacientes desenvolvem a síndrome e outros não, apesar de terem o mesmo tipo de tumor; e, com base nisso, encontrar maneiras de mitigar o problema.
Décadas de pesquisa pelo grupo vêm mostrando que a caquexia é caracterizada por uma resposta inflamatória sistêmica, desencadeada em grande parte por fatores que são secretados pelo tecido adiposo do organismo, e que exercícios físicos podem atenuar significativamente os efeitos da síndrome. “O câncer é uma doença sistêmica, ele não se resume ao tumor; é uma doença do corpo todo”, explica Marilia Seelaender. “No caso da caquexia, é essa resposta inflamatória do corpo que está exacerbada.”

Instrumentação
O novo centro contará com uma central analítica, equipada com instrumentos de última geração, abrangendo todas as necessidades de pesquisa em metabolismo; além de um biotério para animais de pesquisa e diversas salas dedicadas à cultura de células, microscopia e outras especialidades. Cada grupo de pesquisa terá o seu próprio laboratório, mas a central analítica e outras instalações técnicas serão de uso compartilhado, já que muitos equipamentos são de interesse comum às diferentes linhas de investigação.
Parte desses equipamentos será transferida dos atuais laboratórios dos pesquisadores para o novo prédio; outra parte será comprada com recursos já previstos no projeto, incluindo dois novos espectrômetros de massa e máquinas de ressonância magnética nuclear. “Essa instrumentação é absolutamente essencial e vai colocar a USP na fronteira do que a gente é capaz de fazer”, destaca Alicia Kowaltowski.
“Essa parte de análise de precisão é algo que está se tornando cada vez mais importante para entender doenças e identificar vias metabólicas alteradas, nas quais a gente possa intervir para uma estratégia terapêutica”, reforça a professora Sayuri Miyamoto, que vai chefiar a central analítica do CoMeta. Seu laboratório, no Departamento de Bioquímica do IQ é referência internacional em análises qualitativas e quantitativas de metabólitos, como são chamadas as moléculas envolvidas no metabolismo. Um dos carros-chefe do grupo atualmente é a pesquisa de alterações no metabolismo de colesterol esterificado em pessoas com doenças neurodegenerativas, como esclerose lateral amiotrófica e Parkinson. “A gente não sabe se é uma causa ou uma consequência da doença, mas é um marcador molecular”, resume Sayuri Miyamoto. “Então, a gente está investigando essa via: como o colesterol é esterificado e qual a consequência disso nessas doenças.”
O principal equipamento do laboratório é um espectrômetro de massa de alta resolução, que já tem dez anos de uso e precisa ser substituído. Com as novas instalações e colaborações do CoMeta, segundo Miyamoto, será possível fazer muito mais.
A central analítica do CoMeta também poderá ser utilizada por pesquisadores de fora do centro, que necessitem dos mesmos instrumentos. “Temos como filosofia que o acesso a esse parque de equipamentos deverá funcionar da forma mais aberta possível, em benefício de toda a USP”, explica Kowaltowski. Uma vez que o prédio estiver pronto e operacional, o plano é abrir chamadas para trazer mais grupos de pesquisa para se juntarem ao centro, ocupando espaços adicionais que já estão previstos no projeto. “Eu gostaria muito que essas chamadas atraíssem jovens pesquisadores, na ponta mesmo, para trazer gente nova e energética para dentro do centro”, diz Kowaltowski.
Os pós-doutorandos e alunos de pós-graduação são uma parte fundamental do projeto, destacada por todos os participantes do projeto. Juntando os quatro grupos de pesquisa, serão cerca de cem jovens cientistas trabalhando no centro. “Uma das coisas que eu acho mais importante em ciência é a gente conversar sobre o que está fazendo”, diz Kowaltowski. Muitas vezes, porém, essa comunicação acaba ficando restrita aos docentes e pesquisadores-chefes dos laboratórios, que viajam para congressos e participam de reuniões. “Mas, se você coloca todo mundo no mesmo prédio, todos os estudantes e pós-docs estão juntos também; e é essa conversa entre eles que realmente faz a coisa acontecer, porque são eles que fazem os experimentos e tocam os projetos”, completa a professora. “Me anima muito pensar nos estudantes juntos, trocando ideias o tempo todo, em um ambiente onde todo mundo trabalha com metabolismo.”
“O cerne da felicidade de estar nesse grupo, para mim, é a essa interação entre os alunos”, reforça Marilia Seelaender.
Da bancada ao leito
Outro ponto-chave do projeto é a conexão umbilical que existirá entre o centro e o Hospital Universitário. “A localização do CoMeta junto ao HU promoverá ativa transferência de conhecimentos básicos para a prática clínica (bench to bedside), além de permitir ao HU acesso a instrumentação de ponta capaz de realizar medidas metabólicas quantitativas”, diz o texto do projeto. “O conceito permitirá integração plena entre o HU e CoMeta, ampliando e elevando a qualidade e oportunidades de pesquisa, ensino e extensão de ambas as organizações.”
Para o superintendente do hospital, José Pinhata Otoch, a vinculação entre HU e CoMeta funcionará como uma via de mão dupla, com conhecimento fluindo tanto do laboratório para o hospital quando do hospital para o laboratório. “A translacionalidade com bases epidemiológicas é o elo crucial”, afirma Pinhata, médico cirurgião e professor da Faculdade de Medicina da USP. Ao mesmo tempo que as pesquisas realizadas no CoMeta poderão orientar o desenvolvimento de novas práticas médicas no HU, a experiência clínica e os dados epidemiológicos do hospital ajudarão a direcionar as pesquisas do centro, “garantindo que os estudos do CoMeta sejam relevantes e respondam às reais necessidades da população”, completa ele.
“Em resumo, o CoMeta transforma o HU de um prestador de serviços de excelência em um ecossistema de inovação integrado. Ele assegura que a assistência de hoje seja continuamente aprimorada pela ciência de amanhã, consolidando o hospital não apenas como uma referência de cuidado, mas como um motor de conhecimento translacional para o Sistema Único de Saúde”, conclui Pinhata. O hospital atende mais de 1 milhão de pessoas da zona oeste expandida de São Paulo.
Processo seletivo
A criação do CoMeta será financiada integralmente pela Reitoria da USP, com investimentos previstos de R$ 25,8 milhões para a construção do prédio e US$ 4,3 milhões para a aquisição de equipamentos. A seleção do projeto foi realizada com base numa prospecção conduzida pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) da USP, a pedido da Reitoria, que convidou a comunidade acadêmica a apresentar “projetos arrojados”, capazes de elevar ainda mais o patamar das pesquisas realizadas dentro da Universidade.
“É importante que a Universidade saiba ter essa visão de identificar certas carências e ajudar a articular a formação de centros”, diz o pró-reitor de Pesquisa e professor do Instituto de Física da USP, Paulo Nussenzveig. “É uma questão de você ter a percepção do senso de oportunidade. Juntar as pessoas certas, na hora certa, nem sempre é trivial; especialmente com base em mecanismos que muitas vezes são estanques, conservadores.”
Segundo Nussenzveig, a prospecção resultou na apresentação de seis projetos, dos quais dois foram selecionados para implementação: o do CoMeta e o da criação de um núcleo de GPUs (unidades de processamento gráfico, em inglês) no âmbito do Centro de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina (CIAAM) da USP. A avaliação das propostas foi realizada por um grupo de pareceristas internacionais.
A criação do CoMeta se soma a outras iniciativas lançadas recentemente pela Reitoria da USP, que resultaram na criação de sete Centros de Estudo USP, ligados diretamente ao Gabinete do Reitor, e onze Centros de Pesquisa e Inovação Especiais (Cepix), vinculados a diferentes unidades da USP. Além disso, mais de cem projetos foram selecionados neste ano, por meio de um edital da Reitoria, para receber recursos destinados à compra de equipamentos e melhorias na infraestrutura de pesquisa da Universidade, com investimento total de R$ 210 milhões.
O CoMeta conta ainda com suporte da Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp), que está coordenando o processo de seleção do projeto executivo para a construção do centro. O prazo para a submissão de propostas das empresas interessadas terminou na última segunda-feira, 27 de outubro. (Com informações do Jornal da USP / Texto: Herton Escobar)
