Tratamento para hipertensão: 90% disseram seguir, mas exame laboratorial confirmou só um terço
Mesmo com tratamento gratuito disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), a baixa adesão continua sendo uma barreira para o sucesso do tratamento e controle da pressão alta. Em busca de compreender melhor esse paradoxo, uma pesquisa da Escola de Enfermagem (EE) da USP aplicou um questionário de autorrelato junto a exames de urina para verificar a presença de medicamentos em 253 pessoas hipertensas.
O contraste entre as metodologias foi contundente: enquanto 90,1% dos participantes disseram aderir ao tratamento, a análise de urina confirmou adesão em apenas 32,4% dos casos. O resultado indica que pacientes afirmam tomar os medicamentos, mas não o fazem na prática.
“Muitos pacientes tendem a superestimar sua adesão por medo de julgamento, vergonha ou para agradar o profissional de saúde. Outros acreditam estar aderindo, mas fazem uso de forma irregular da medicação, esquecem doses ou interrompem o uso em períodos de melhora dos sintomas”, explica Mayra Pádua Guimarães, doutoranda da EE e autora da pesquisa. Ela complementa que, por mais útil que o autorrelato seja na prática clínica, ele é sujeito a vários vieses, enquanto o exame de urina permite uma análise objetiva da adesão medicamentosa.
Se não for tratada, a hipertensão arterial é um fator de risco para a ocorrência de acidente vascular encefálico (AVE), infarto, aneurisma arterial, doença renal e cardíaca. Ainda que existam intervenções não farmacológicas, como a implementação de hábitos saudáveis, prática de atividade física e uma dieta equilibrada, elas não substituem o tratamento medicamentoso na maioria dos casos. Segundo Mayra, “a maior parte dos hipertensos de fato precisa de medicamentos para controlar a pressão”.
Relato vs. exames
Avaliar a adesão medicamentosa está longe de ser uma tarefa simples. Não existe um método considerado padrão ouro e a recomendação atual da Organização Mundial da Saúde (OMS) é a combinação de meios indireto e direto, como a contagem manual de comprimidos e análise sanguínea. Mayra conta que, neste caso, o autorrelato e o exame de urina foram escolhidos para contrapor estudos nacionais que utilizam exclusivamente métodos indiretos.
No questionário, foi aplicada a Escala de Morisky e Green Levine, composta de quatro questões com resposta “sim” ou “não” sobre a conduta de pacientes no uso da medicação. Nela, consideram-se pacientes aderentes ao tratamento quando todas as respostas são negativas, e não aderentes os que concordaram com alguma afirmação.
Entre as perguntas, estavam:
- Você alguma vez se esqueceu de tomar seu remédio?;
- Às vezes, você é descuidado para tomar seu remédio?;
- Quando você se sente melhor, às vezes, você para de tomar seu remédio?;
- Às vezes, se você se sente pior quando toma seu remédio, você para de tomá-lo?
O item que mais contribuiu para a falta de adesão, segundo a escala, foi o esquecimento (7,5%).
Já para a análise das urinas, definiu-se como a “não adesão ao tratamento anti-hipertensivo” a presença de menos de 80% dos anti-hipertensivos, segundo a prescrição médica. No final, dos 253 participantes — atendidos pela Unidade de Hipertensão da Disciplina de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina na USP (HCFMUSP) — 32,4% foram considerados adeptos ao tratamento pelo método direto (exame), em contraste aos 90,1% do indireto (autorrelato).
Mayra tem algumas hipóteses sobre o porquê da disparidade. Ela observa que o questionário está sujeito ao viés de memória do participante, o que pode resultar em um resultado falso, ainda que não intencional. Além disso, o exame de urina pode não refletir o uso habitual: “É possível que alguns pacientes tenham deixado de tomar o medicamento apenas naquele dia, ou tenham tomado somente naquele dia”.
Mesmo com as limitações do estudo, a pesquisadora acredita que a metodologia objetiva reforça a confiabilidade no achado. Para ela, “há uma grande diferença entre o que se relata e o que se pratica no uso de medicamentos anti-hipertensivos”.
O que afeta a adesão?
A realidade de cada paciente pode influenciar diretamente a continuidade do tratamento para hipertensão. Os hipertensos podem se sentir desencorajados a insistirem no uso dos medicamentos pelos efeitos colaterais, polifarmácia (uso de vários fármacos), baixo letramento em saúde e a cronicidade da doença. Até pequenos deslizes, como uma rotina desorganizada ou o esquecimento, comprometem o processo de controle da doença.
Mas nem sempre a frequência do tratamento depende apenas da disposição do paciente. Mayra afirma que, em alguns casos, o problema pode estar no acesso, mesmo que o SUS disponibilize gratuitamente os principais remédios para hipertensão. “A existência de desabastecimentos pontuais e problemas logísticos podem comprometer o cuidado contínuo, além de barreiras econômicas para quem depende de medicamentos de marca ou não padronizados”, diz ela.
A pesquisa intitulada Prevalência De Adesão ao Tratamento Medicamentoso Anti-Hipertensivo: Comparação Entre Os Métodos Direto e Indireto, orientada pela professora Angela Maria Geraldo Pierin, recebeu financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Recentemente, foi premiada em 2º lugar como melhor trabalho da área de Pesquisa Clínica no 32º Congresso da Sociedade Brasileira de Hipertensão, e será submetida para publicação em revista internacional. Em breve, também estará na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. (Com informações do Jornal da USP)