Formação médica no Brasil tem qualidade?

Por Iara de Xavier

A Lei nº 12.871, de 2013, que instituiu o Programa Mais Médicos alterou, significativamente, a formação médica no Brasil ao desvincular a autorização dos cursos de medicina do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), implantado pela Lei Nº 10.861, de 2004, que, até a presente data, norteia a autorização dos demais cursos de graduação.

Esta desvinculação teve como um dos motivos a implementação de uma política pública restritiva em relação à expansão de cursos de medicina em Instituições de Educação Superior (IES) particulares, independentemente, dos indicadores de qualidade e da realidade epidemiológica da região, do estado e do Brasil.

Apesar da educação superior brasileira ser extremamente regulamentada pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), a formação médica, desde 2013, é produto de dois modelos avaliativos distintos e antagônicos para fins de autorização dos cursos de medicina no país. A saber: (i) a formação médica resultante do SINAES e (ii) a formação médica resultante de editais publicados pelo MEC a partir de 2013, respaldados pela Lei do Programa Mais Médicos, que privilegia os aspectos financeiros e políticos em detrimento das especificidades educacionais.

Vale ressaltar que os cursos de graduação, inclusive todos os cursos de graduação da saúde, exceto os cursos de medicina autorizados a partir de 2013 pelo MEC, foram avaliados, para fins de autorização, pelo SINAES, que é uma política de Estado, que tem como base a qualidade da educação superior. Assim, apenas os cursos de medicina seguem uma sistemática alternativa, pautada na Lei nº 12.871, de 2013.

O SINAES tem uma trajetória na educação superior, de 2004 a 2022, que preconiza a expansão com qualidade, contemplando as seguintes modalidades: avaliação institucional, avaliação de cursos e Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). Essas modalidades são coordenadas pelo INEP e operacionalizadas por docentes titulados, com vasta experiência acadêmica e profissional selecionados, capacitados e designados pelo INEP.

Além dessas, o SINAES ainda estabelece a autoavaliação institucional realizada pela Comissão Permanente de Avaliação (CPA) que tem inúmeras atribuições, inclusive o controle social. Com base na Lei Nº 10.861, todas as CPA contam com as seguintes representações paritárias: docente, técnico-administrativa, aluno e representante da sociedade civil. A autoavaliação institucional compreende as dez dimensões definidas na Lei do SINAES e se caracteriza como um processo contínuo, tendo os cursos de graduação como foco principal dessa modalidade. Vale registrar que todas as IES postam, anualmente, até o dia 31 de março, o relatório da autoavaliação no sistema e-MEC para análise do MEC.

Nesse sentido, a sistemática de avaliação estabelecida pelo SINAES prima pela formação acadêmica de qualidade e reforça os princípios educacionais contemporâneos por meio de protocolos e instrumentos de avaliação que possibilitam a verificação das reais condições de oferta dos cursos, assim como das IES que pleiteiam as autorizações pelo MEC.

As avaliações dos cursos de medicina no contexto do SINAES são realizadas in loco presencialmente nos espaços institucionais destinados aos cursos e, também, nas unidades de saúde do SUS local, que atuam como cenários de práticas e de estágios. Essas avaliações são realizadas por comissões designadas pelo INEP/MEC, integradas por dois docentes médicos, com titulação de mestre e doutor, que exercem à docência em cursos de medicina em IES públicas ou particulares. As comissões seguem, rigorosamente, os instrumentos de avaliação do INEP, aprovados pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES), que contemplam as dimensões (i) Organização Didático Pedagógica; (ii) Corpo Docente e Tutorial e (iii) Infraestrutura. Cada dimensão conta com um conjunto de indicadores e critérios de análise, possibilitando uma avaliação detalhada e completa das condições reais de oferta do curso de medicina. Participam dessas avaliações in loco os dirigentes, a CPA, a Coordenação e o NDE do curso, os docentes, os discentes e os técnicos administrativos, além dos preceptores e os profissionais médicos dos campos de estágios vinculados ao SUS.

Além da Lei do SINAES, essa formação médica precisa atender, integralmente, a Resolução CES/CNE Nº 3, de 20 de junho de 2014, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e a Resolução CES/CNE Nº 2, de 18 de junho de 2007, que dispõe sobre carga horária mínima e procedimentos relativos à integralização e duração dos cursos de graduação, bacharelados, na modalidade presencial, definindo que todos os cursos de medicina devem ter carga horária mínima de 7.200 horas com limite mínimo para integralização de 6 (seis) anos, assim como a Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de1990, que estabelece as bases do Sistema Único de Saúde (SUS) e dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

Já as avaliações para fins de autorização na lógica do Programa Mais Médicos são exclusivamente pautadas em análises documentais, tendo como referência principal o edital publicado pelo MEC, não ocorrendo avaliação prévia, nem do corpo docente, nem da infraestrutura. Trata-se de simples avaliação de projetos.

Retomando a narrativa do binômio qualidade e avaliação, o Censo da Educação Superior de 2020 do INEP/MEC e os atos da SERES/MEC, publicados no DOU em 2021, revelam que a maioria dos cursos de medicina autorizados e submetidos ao SINAES tem conceitos satisfatórios (3, 4 e 5) nas diversas modalidades avaliativas realizadas pelo INEP, possibilitando aferir que esses cursos de medicina têm compromisso com a qualidade e com a responsabilidade social e que o SINAES, que é nacional e operacionalizado em todas as IES públicas e privadas vinculadas ao Sistema Federal de Ensino Superior, tem possibilitado a expansão da formação médica com qualidade, inclusão e diversidade. Assim, é evidente que esses cursos de medicina são avaliados, periodicamente, pelo INEP, com envolvimento da CONAES, da SERES, da CPA, do CNE e, em caráter consultivo, do Conselho Nacional de Saúde, conforme preconiza a legislação educacional, com destaque para a Lei Nº 10.861, de 2004 e o Decreto Nº 9.235, de 2017.

Outro aspecto a ser considerado é que os egressos desses cursos de medicina ofertados pelas IES particulares ingressam em programas de residência altamente concorridos, em programas internacionais de capacitação médica, além de inserção no exercício profissional no SUS e no setor de saúde privado, respondendo majoritariamente pela atenção em saúde.

Outro ponto a ser considerado, é a impossibilidade, desde 2013, de abertura de novos cursos de medicina na lógica do SINAES sem justificativas sanitárias e epidemiológicas, que respaldam essa política pública restritiva em relação à formação médica no Brasil.

Essa realidade é extremamente preocupante por vários motivos, principalmente, por estarmos vivendo a era das pandemias, conforme alerta estudiosos e pesquisadores nacionais e internacionais.

Yuval Harari, no livro Notas sobre a pandemia: breves lições para o mundo pós-coronavírus, publicado em 2020, pergunta o seguinte: Quando a vacina ficar de fato pronta e a pandemia chegar ao fim, qual será a principal lição que a humanidade extrairá disso tudo?

Ele responde

Muito provavelmente, que precisamos dedicar ainda mais esforços à proteção das vidas humanas. Precisamos de mais hospitais, mais profissionais de medicina e de enfermagem. Precisamos estocar mais respiradores, mais equipamentos de proteção, mais kits de testagem. Precisamos investir mais dinheiro na pesquisa de patógenos desconhecidos e no desenvolvimento de novos tratamentos. Não podemos ser pegos desprevenidos de novo.

Estudos e documentos oficiais revelam que a carência de profissionais de saúde no Brasil não é recente. É na verdade um problema crônico, que tem dificultado a implementação de vários programas e projetos vinculados ao SUS. Com a pandemia da Covid-19, essa situação se agravou, chegando a pôr em risco a qualidade da assistência prestada à população nas cinco regiões brasileiras.

A convivência com a Covid-19, desde março de 2020, evidenciou a importância da formação dos profissionais de saúde, especialmente, a formação médica. Os vírus não informam nem previnem quando irão se manifestar. Quando as epidemias e pandemias se instalam, não tem posições jurídicas nem políticas que sustentam as condições de saúde. Caberá aos serviços de saúde, munidos com equipamentos e profissionais, assumirem a assistência integral dos cidadãos.

Por fim, respondendo à questão inicialmente, a formação médica no Brasil, advinda do SINAES, tem sim qualidade determinante, comprovada por todos os indicadores definidos pelo Ministério da Educação, assim como pela atuação dos profissionais médicos em todo território brasileiro. O mesmo já não se pode dizer da formação médica advinda do Mais Médicos, em função do País ainda não ter, sequer, quantitativo expressivo de egressos de cursos autorizados pelo Programa, que possibilite a realização de estudos sobre a inserção desses egressos nas residências médicas e no mundo do trabalho em saúde.


*Iara de Xavier é Diretora-executiva da EDUX21 Consultoria Educacional e Diretora técnica da Abrafi.

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