Bactérias multirresistentes já não são problema restrito ao ambiente hospitalar

Um estudo recente apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado, investiga uma situação que tem chamado a atenção da comunidade científica internacional.

Bactérias da espécie Klebsiella pneumoniae estão entre os microrganismos que mais causam infecções hospitalares e também entre os que mais têm desenvolvido resistência a antibióticos nos últimos anos.

Pertence ao grupo, por exemplo, a KPC (Klebsiella pneumoniae carbapenemase), que ficou conhecida como superbactéria por produzir uma enzima capaz de inativar os medicamentos mais potentes disponíveis para o tratamento de infecções graves.

Análises

Assim, uma pesquisa com apoio da Fapesp e publicada no Journal of Global Antimicrobial Resistance mostrou que patógenos multirresistentes, inclusive as produtoras de KPC, já não são um problema restrito ao ambiente hospitalar no Brasil.

Ao analisar espécimes de K. pneumoniae isolados da urina de 48 pessoas diagnosticadas com infecção urinária na região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, cientistas observaram que 29 amostras (60,4%) continham bactérias não suscetíveis a três ou mais classes de antibióticos e, portanto, consideradas multirresistentes (MDR).

Em 30 amostras (62,5%), foram identificados 73 diferentes genes de virulência, codificadores de proteínas que ajudam o microrganismo a driblar o sistema imune ou a se disseminar mais facilmente no ambiente.

Amostras

Vale destacar que o pesquisador coordena um projeto que busca comparar o perfil molecular de espécimes de Klebsiella isolados em pacientes de hospitais das cinco regiões brasileiras (Londrina, Brasília, Teresina, Manaus e Ribeirão Preto) e de países dos cinco continentes (Nova Zelândia, Canadá, Holanda, África do Sul e Índia).

As amostras da comunidade ribeirão-pretana foram obtidas por acaso, quando os pesquisadores coletavam bactérias isoladas em pacientes de um hospital local. O trabalho teve início quando André Pitondo da Silva ainda era pesquisador da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP), da Universidade de São Paulo (USP).

No estudo divulgado no Journal of Global Antimicrobial Resistance, foram consideradas apenas as análises das 48 amostras dos pacientes não internados. Destes, 31,3% tinham mais de 60 anos, 27,1% tinham entre 30 e 59 anos, 14,6% eram jovens entre 16 e 29 anos e 12,5% eram crianças com idade entre 1 e 15 anos. Havia também um recém-nascido e outros seis pacientes sem idade identificada. Em relação ao sexo, 75% das amostras analisadas eram de mulheres.

Técnica

O primeiro passo da análise foi confirmar se todas as bactérias isoladas eram, de fato, da espécie K. pneumoniae. Para isso, o grupo usou uma técnica conhecida como MALDI-TOF, uma aplicação da espectrometria de massas à microbiologia. Em seguida, foi feito um antibiograma para investigar o perfil de resistência.

O exame é bastante comum em laboratórios de análises clínicas e permite descobrir a quais antibióticos os patógenos são suscetíveis. “Cultivamos as bactérias presentes em cada amostra em placas de Petri e colocamos sobre as culturas pequenos discos impregnados com antibióticos. Testamos simultaneamente 38 antibióticos diferentes e, depois, avaliamos o quanto cada um foi capaz de inibir o crescimento microbiano”, explicou André Pitondo da Silva, professor da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) e coautor do artigo, à Agência Fapesp.

Entre os 48 isolados de K. pneumoniae, todos mostraram não suscetibilidade a quatro ou mais antibióticos testados. Todos foram resistentes à trimetoprima, 47 (97,9%) às sulfonamidas, 43 (89,6%) ao ácido nalidíxico, 40 (83,3%) à nitrofurantoína, 26 (54,2%) à trimetoprima/sulfametoxazol, 24 (50,0%) à doxiciclina, 19 (39,6%) à minociclina, 18 (37,5%) à lomefloxacina, 17 (35,4%) à piperacilina/tazobactam, 16 (33,3%) à estreptomicina e ao cefaclor, 15 (31,3%) à ticarcilina e ao ácido clavulânico, 14 (29,2%) à ceftarolina, 13 (27,1%) à ampicilina/sulbactam, cefixima e tobramicina, 11 (22,9%) à amoxicilina/ácido clavulânico, cefalotina e norfloxacina, 10 (20,8%) ao cloranfenicol, 9 (18,8%) ao aztreonam, cefazolina, cefepima, ceftriaxona, ertapenem, imipenem e meropenem, 8 (16,7% cada um) à amicacina, cefotaxima, cefuroxima, ciprofloxacina, ceftazidima, tetraciclina e ofloxacina, 7 (14,6% cada um) ao doripenem, cefoxitina e levofloxacina e 5 (10,4%) à gentamicina.

Virulência

Os genes de resistência e virulência foram investigados pelas técnicas de PCR (reação em cadeia da polimerase) e sequenciamento e a relação genética entre as bactérias foi avaliada por ERIC-PCR (análise das regiões repetitivas intergênicas em enterobactérias) e MLST (sequenciamento de múltiplos loci).

Outros dois isolados apresentaram um fenótipo de virulência encontrado apenas em hospitais, conhecido como hipermucoviscosidade. Essas bactérias produzem um biofilme espesso e viscoso, capaz de aderir ao epitélio da bexiga, tornando difícil sua eliminação.

Oportunismo

A K. pneumoniae é considerada uma bactéria oportunista, ou seja, pode integrar a microbiota de um indivíduo durante anos, sem causar problemas. Porém, quando há queda na imunidade, em decorrência de uma doença, de um tratamento ou do envelhecimento, o microrganismo pode se manifestar de diversas formas: infecções pulmonares, urinárias, feridas (cirúrgicas ou escaras) e até mesmo sepse (infecção generalizada).

A principal forma de contaminação é o contato com fluidos do paciente infectado, que pode ocorrer por meio de sondas e cateteres, por exemplo. “Quando bactérias MDR são identificadas em hospitais, principalmente as produtoras de KPC, são adotados protocolos rigorosos para evitar a disseminação, podendo até mesmo limitar a visitação ao paciente”, salientou André Pitondo da Silva.

Resistência

Conhecer as características moleculares das bactérias encontradas nos hospitais de diferentes regiões do Brasil e do mundo ajuda a entender como os genes de resistência e virulência estão se disseminando e como a espécie está evoluindo, informação essencial para o controle de infecções e o tratamento correto dos pacientes.

Em um hospital de Londrina, no Paraná, o grupo identificou amostras de K. pneumoniae classificadas como pan-resistentes (PDR), ou seja, que não respondem a nenhuma classe de antibiótico disponível. Os dados foram divulgados na revista Infection, Genetics and Evolution em 2017. Nesses casos, os médicos costumam associar medicamentos para tentar eliminar o microrganismo por meio de uma ação sinérgica.

Atualmente, além das bactérias isoladas de infecções comunitárias e hospitalares, o grupo de microbiologia da Unaerp está pesquisando o perfil de resistência e virulência de Klebsiellas causadoras de infecções orais (endodônticas) e também a possível disseminação de bactérias multirresistentes no meio ambiente por meio de águas fluviais e de esgoto hospitalar.


O artigo Molecular characterisation of multidrug-resistant Klebsiella pneumoniae belonging to CC258 isolated from outpatients with urinary tract infection in Brazil, de Paola Aparecida Alves Azevedo, João Pedro Rueda Furlan, Guilherme Bartolomeu Gonçalves, Carolina Nogueira Gomes, Rafael da Silva Goulart, Eliana Guedes Stehling e André Pitondo da Silva, pode ser lido pela internet.

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