Erro médico ou complicação? A diferença está em como se prova

Por Marcela Freire

Na minha atuação diária defendendo médicos, observo um padrão perigoso: a maioria dos processos judiciais não nasce de uma falha técnica, mas sim da confusão sobre um conceito fundamental — a diferença entre erro médico e complicação. Para o paciente, qualquer desfecho negativo é um erro. Para a Justiça, no entanto, a análise é técnica, e essa diferença conceitual pode ser o divisor de águas entre uma absolvição e uma condenação. Compreender como essa distinção é tratada nos tribunais não é um exercício acadêmico — é a estratégia mais importante de gestão de risco para a sua carreira e para o seu negócio.

A medicina é uma ciência de meios, não de resultados. Nenhum profissional pode garantir a cura, apenas comprometer-se com a melhor conduta técnica possível diante de cada caso concreto. Contudo, essa premissa, tão clara no meio médico, costuma ser ignorada em situações de insucesso terapêutico. E é justamente nesse momento que a palavra “erro” passa a circular — muitas vezes, sem base técnica, mas com força emocional suficiente para desencadear litígios longos, custosos e profundamente danosos à imagem do profissional.

Como advogada especialista em Direito Médico, afirmo com segurança: a fronteira entre a absolvição e a responsabilização está, quase sempre, na qualidade da documentação médica. Provar que o resultado decorreu de uma complicação inerente — e não de uma falha de conduta — exige mais do que uma boa técnica: exige uma estratégia de registro e defesa preventiva bem estruturada.

A Visão do Judiciário: Onde a Responsabilidade Realmente Começa

Do ponto de vista legal, a responsabilidade do médico é subjetiva. Isso significa que, para haver condenação, é indispensável a comprovação de culpa. Este é o alicerce de toda a discussão, formalizado no Artigo 1º do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018), que veda ao médico causar dano por imperícia, imprudência ou negligência.

Para aplicar esse conceito na prática, é vital organizar os fatos com precisão terminológica:

Intercorrência: É um evento clínico inesperado que ocorre durante o tratamento, e que geralmente é leve, transitório e controlável com medidas simples. A intercorrência é o fato, o sinal de alerta.

Complicação: Trata-se de uma evolução clínica desfavorável, muitas vezes inesperada, que pode surgir mesmo quando o procedimento é conduzido de forma correta e dentro das boas práticas médicas. Em geral, a complicação é um risco inerente ao ato médico, previsto na literatura especializada e que pode demandar condutas adicionais para contenção ou reversão do quadro, sem, contudo, configurar erro ou falha técnica.

Erro Médico: Erro médico é a conduta inadequada do profissional, por ação ou omissão, praticada sem intenção de causar dano, mas que resulta em prejuízo à saúde, integridade ou vida do paciente. Ocorre quando o médico não observa os cuidados técnicos, éticos ou científicos exigidos pela medicina, e essa falha gera um desfecho que poderia ter sido evitado.

Pode se manifestar por:

  • Imperícia: falta de habilidade ou conhecimento técnico;
  • Imprudência: ação precipitada ou arriscada;
  • Negligência: omissão de conduta que era obrigatória.

Diferencia-se da complicação porque o erro não decorre de um risco inerente ao ato médico, mas de uma falha pessoal na conduta ou no julgamento profissional.

O que a Justiça avalia quando julga o médico?

A questão central em um processo é sempre esta: o dano (a complicação) foi um risco inerente ao procedimento, devidamente informado e corretamente manejado, ou foi consequência de uma falha na conduta profissional? A resposta, invariavelmente, está nos seus documentos.

A defesa mais eficaz é aquela que se constrói no dia a dia da clínica, por meio de uma documentação robusta e estratégica.

1. O Termo de Consentimento Informado: A Prova do Dever de Informar

Muitos profissionais ainda utilizam modelos de termo de consentimento genéricos, que pouco ou nada protegem. O termo de consentimento é a prova material de que o médico cumpriu seu dever ético, previsto nos artigos 22 e 34 do Código de Ética, de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento — ou seja, sobre as complicações possíveis. Um termo que detalha as complicações mais frequentes e as mais graves, em linguagem clara, transforma-se em uma poderosa ferramenta de defesa, neutralizando a alegação de que o paciente “não sabia do risco”.

2. O Prontuário: A Narrativa Factual da Sua Diligência

O prontuário é a “caixa-preta” do atendimento e o documento de maior peso em um processo. Conforme a Resolução CFM nº 1.638/2002, ele possui caráter legal. É nele que a distinção entre os conceitos se materializa de forma decisiva. Um prontuário defensivo deve registrar:

  • A Intercorrência: “Paciente apresentou pico febril de 38.5ºC às 22h”.
  • A Investigação: “Solicitados exames X e Y para apuração da causa”.
  • O Diagnóstico da Complicação: “Confirmado diagnóstico de pneumonia”.
  • O Manejo Detalhado: “Iniciada antibioticoterapia com [fármaco], conforme protocolo. Paciente e familiares comunicados sobre o diagnóstico e a conduta adotada”.

Essa descrição minuciosa transforma o que poderia ser interpretado como negligência em uma prova irrefutável de diligência e boa prática médica no manejo de um evento adverso.

A implementação de protocolos documentais rigorosos é uma decisão estratégica. Investir no treinamento da equipe e na revisão periódica de documentos como termo de consentimento não é um custo, mas uma proteção. A assessoria jurídica preventiva garante que a percepção leiga de “erro” não se sobreponha à realidade técnica dos fatos, protegendo seu maior ativo: a sua reputação.

Médicos não precisam viver com medo de processos. Com orientação jurídica especializada, é possível alinhar sua prática assistencial à segurança legal. Se você deseja revisar seus documentos ou implementar protocolos eficazes de proteção profissional, busque um advogado especialista. A prevenção é sempre o melhor remédio — inclusive na medicina.


*Marcela Freire é Advogada especialista em Direito Médico e Presidente da Comissão de Direito Médico da OAB/ Duque de Caxias.

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