Políticas públicas: a epidemia de dengue é só o começo
Por Mara Machado
Na semana passada, o governo de São Paulo decretou emergência sanitária pouco antes de o estado alcançar a marca de 300 casos de dengue para cada 100 mil habitantes, nível considerado de epidemia. O combate à dengue não é novidade e sempre esteve longe de evitar os picos da doença nas temporadas de chuva. Mas dessa vez, alguns elementos fundamentais contribuíram para a situação ficar ainda pior.
Primeiro, o governo federal reduziu em 58,5% o gasto com campanhas para prevenção e conscientização sobre a dengue em 2023, mesmo com diversos alertas de que 2024 poderia alcançar um número recorde de casos. Em setembro do ano passado, o Ministério da Saúde anunciou um plano de ações contra as chamadas arboviroses, que incluem Zika e Chikungunya, além da dengue, com investimentos 50% acima do período anterior.
Falta consistência nas políticas públicas. Não dá para sustentar campanhas consistentes e efetivas, com ações estruturadas, em meio às oscilações tão acentuadas do orçamento. Mas antes fosse só esse o problema. Longe disso.
As mudanças climáticas também indicam aumento do volume de chuvas e das chuvas severas. Segundo o Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP), o acumulado de chuva na capital paulista cresceu, em média, 5.5 mm por ano entre 1933 e 2023. Neste último ano, o volume acumulado de precipitações foi de 1784.5 mm — mais que o dobro do registrado no início da série histórica, um século antes.
As chuvas severas, quando o volume ultrapassa 80 mm por dia, estão se tornando mais frequentes. Entre os anos de 1941 e 1950, por exemplo, só houve dois dias em que foram registradas chuvas de mais de 80 mm. Entre 1961 e 1970, foram seis dias. Já entre os anos de 2001 e 2010, 12 dias tiveram registro de chuvas severas, chegando a 13 na última década analisada, entre 2011 e 2019.
O maior volume de água de chuva, especialmente em chuvas severas, que causam alagamentos e outros prejuízos ao cotidiano das cidades, favorece o surgimento de criadouros do Aedes Aegypti, mosquito transmissor da dengue e outras arboviroses.
Mas ainda existem mais problemas. Em todo o Brasil, mais de 90 milhões não têm acesso à coleta de esgoto e cerca de 32 milhões não têm acesso à água potável, segundo o Ranking do Saneamento 2024, divulgado pelo Instituto Trata Brasil. Esses são indicadores básicos de infraestrutura, sem os quais, a comunidade fica exposta a esgoto a céu aberto, não raro em ambientes com lixo e entulho acumulados, gerando inúmeros focos favoráveis à criadouros do mosquito.
Além da dengue, o brasileiro que reside nesse contexto de pobreza está exposto a uma série de outros problemas de saúde em potencial, como contaminações por vírus e bactérias, causadores de problemas como diarreias, hepatite A, febre tifoide, esquistossomose, malária, tracoma e infecções por vermes intestinais. Também podem ocorrer problemas crônicos de saúde, como comprometimento do desenvolvimento, danos renais, distúrbios neurológicos por contaminantes químicos, danos ao sistema imunológico, doenças dermatológicas, respiratórias e problemas de saúde mental.
Esse é o cenário. Falta de infraestrutura, mudanças climáticas e inconsistência nas políticas públicas. A reversão desse quadro não é simples, tão pouco rápida. O primeiro passo é enxergar que saúde não se cuida com ações pontuais e sim de maneira estrutural, com políticas públicas consistentes, atreladas a diversas áreas como educação, saneamento básico, conscientização da população, acesso a condições dignas de vida e, claro, um Sistema Único de Saúde (SUS) fortalecido e robusto, capaz de executar o seu papel constitucional de garantir saúde a todos.
*Mara Machado é CEO e fundadora do IQG (Instituto Qualisa de Gestão).