Acesso x assertividade científica. O dilema dos testes rápidos

Por Fábio Brazão

A medicina vem avançando a passos largos. Graças à ciência e às novas tecnologias, o segmento de diagnóstico médico tem evoluído rapidamente, trazendo maior efetividade para os tratamentos de doenças. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), há 228 exames e testes que deveriam estar acessíveis a todas as pessoas, seja na rede pública ou na saúde suplementar, justamente para identificar doenças que possam ser tratadas antes de virarem crônicas ou graves. A maioria desses exames laboratoriais envolve diagnóstico e monitoramento de doenças prevalentes, além de métodos para verificar a segurança em doações de sangue, por exemplo. Para a OMS, inclusive, a segurança é um dos seis atributos da qualidade, definidos nos protocolos gerais da Organização. Observando isso, desde 2013 o Ministério da Saúde do Brasil criou o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP).

A ocorrência de eventos adversos devido a cuidados inseguros é provavelmente uma das 10 principais causas de morte e incapacidade no mundo, de acordo com levantamento feito também pela OMS. Os erros mais prejudiciais estão relacionados ao diagnóstico, prescrição e uso de medicamentos. Sendo que 38,3% das reclamações dos pacientes estão relacionadas ao atraso no diagnóstico. Por isso, tem se investido tanto na evolução do segmento de diagnóstico no Brasil e no mundo. A medicina nunca foi exata e há, muitas vezes, doenças que possuem sintomas similares; e fechar o diagnóstico preciso para determinar o melhor tratamento, o melhor medicamento, demanda muita investigação, um trabalho criterioso amparado por exames e análises que envolvem médicos de várias especialidades. A agilidade é importante, mas a assertividade mais ainda.

E uma série de novos exames chegaram nos últimos tempos para trazer mais celeridade às investigações iniciais de doenças. Muitos deles são chamados de testes rápidos e, dentro dos protocolos dos laboratórios, eles ocupam esse lugar de “triagem inicial”, ou seja, sinalizam que algo não está bem. Mas se o achado do exame indicar um resultado muito fora do normal, o primeiro passo é buscar exames complementares que possam trazer mais segurança aos médicos em suas decisões de tratamento.

Esse mês, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu um importante passo ao anunciar uma nova Resolução da Diretoria Colegiada (RDC), a RDC 786, trazendo maior rigor nas exigências quanto aos requisitos técnico-sanitários para o bom desempenho de laboratórios clínicos, de anatomia patológica e outras atividades que estejam relacionadas a exames de análises clínicas no país. E essa atualização foi necessária para atender aos avanços do setor e às novas tecnologias, assim como, garantir a segurança dos pacientes. A revisão é uma resposta aos anseios de toda comunidade laboratorial brasileira, já que a RDC 302 – em vigor há 18 anos – se mostrava desatualizada em relação a muitas metodologias que avançaram após a sua publicação.

Mas ao mesmo tempo que exige maior rigor nos laboratórios, a nova RDC nos traz a preocupação de liberar para a população o acesso a diversos exames que poderão ser feitos fora de um laboratório clínico, como por exemplo, na farmácia – em sua maioria, testes rápidos e feitos a partir de amostras simples como uma gotícula de sangue colhida na ponta dos dedos. Como médico patologista clínico, responsável por elucidar exames e ajudar a chegar ao diagnóstico correto de doenças junto a médicos de diversas especialidades, sinto o dever de alertar a população sobre os riscos dessa nova possibilidade.

O primeiro alerta é alguém achar que pode substituir a ida a um médico, verificando por si próprio “como anda a sua saúde”; o segundo é a pessoa já sair da farmácia com remédios após um teste rápido, praticando a automedicação, principalmente nos testes rápidos de bioquímica, como glicose e colesterol, que são exames quantitativos. O terceiro risco é desperdiçar recursos financeiros, pois vai gastar com o teste rápido inicialmente e, depois, eventualmente o médico pode pedir novos exames laboratoriais para validar um positivo, descartar um “falso negativo” ou elucidar um valor liberado em um teste quantitativo; no qual ele terá maior confiabilidade.

Um resultado falso negativo pode levar um indivíduo a deixar de investigar adequadamente uma doença. Um resultado de teste de colesterol elevado, pode levar ao uso de medicamentos, sem validação médica. Quantas pessoas tiveram um resultado de Covid negativo nos primeiros dias, fazendo um teste rápido de antígenos, e depois confirmaram a doença? Somente o médico tem a capacidade de descartar uma enfermidade, avaliando o quadro clínico, juntamente com resultados de exames. Já um falso positivo pode até levar uma pessoa a ter problemas de saúde mental, ficando estressada desnecessariamente. Por isso, muitas vezes, os médicos recomendam que as pessoas não abram um exame antes deles, para que não sofram antecipadamente e sem motivos. Nos preocupa ainda a subnotificação de casos de determinadas doenças.

A nova RDC da Anvisa concede mais acesso a exames, porém não acreditamos que pular o papel do médico, de primeiramente avaliar sinais e sintomas clínicos, para depois decidir pelos exames corretos e necessários, e pedir ao paciente que vá ao laboratório, irá melhorar a saúde do brasileiro. Muito pelo contrário, nosso receio é de que as pessoas deixem de fazer checkups muito mais amplos – o que deveriam fazer anualmente – e se restrinjam a monitorar como anda a saúde apenas com os testes disponibilizados fora do laboratório.

O corpo é complexo e existe uma série de indicativos de que algo não vai bem. Sinais simples, como perda de apetite, cansaço, fadiga, sono prejudicado, dores em geral já podem ser sinais precoce de uma doença. E muitas delas são silenciosas, não deixando sinais até que já estejam em estado avançado. Um médico deve ser visitado todos os anos preventivamente e sobretudo diante de quaisquer mudanças percebidas no corpo.

Então ratificamos o importante avanço à ampliação da oferta de serviços oferecidos à população brasileira e à assistência à saúde, com a garantia de qualidade dos exames de análises clínicas no país, para atender a evolução do setor de diagnósticos e nos colocamos à disposição da sociedade para esclarecer melhor a utilidade dos testes de triagem e todas as suas limitações. Teste de triagem não é exame confirmatório, que só poderá ser oferecido por um laboratório clínico. Resultado rápido, de minutos, não traz cura rápida.


*Fábio Brazão é médico patologista clínico e presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML).

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