Desamparo do médico frente às responsabilidades éticas e legais

Por Gisele Machado Figueiredo Boselli

O ano de 2024 passou rapidamente? Podemos ter essa sensação, mas quando reexaminamos as inúmeras resoluções do CFM, as modificações na jurisprudência dos Tribunais e as novas normas das agências reguladoras – Anvisa e ANS – que impactaram o Direito Médico e da Saúde, lembramos que os dias de estudo e discussão foram longos, visando à melhor compreensão das inúmeras novidades, que repercutem diretamente na atividade médica e na dos demais profissionais da saúde

Minha ideia inicial para este artigo era elaborar uma “retrospectiva” dos assuntos que mais se destacaram no ambiente médico-jurídico neste ano, mas o intento foi logo abandonado, ao prever que o texto se alongaria demasiadamente. Eu me empenharei, portanto, em apresentar, nas próxima linhas, uma resenha sobre o atual cenário da saúde, com enfoque nas questões jurídicas que reiteradamente vêm afetando o cotidiano dos profissionais que nele atuam.

Devo começar pelo impacto das (mais) novas tecnologias, que ainda geram sentimentos antagônicos, seja nos que já as utilizam – os chamados early adopters -, quanto entre os que apenas as observam. Um recente estudo publicado no Jama Network associou o uso de IA por radiologistas como fator determinante para o burnout, especialmente para profissionais com alta carga de trabalho e àqueles com baixa aceitação dessa nova tecnologia . É um alerta, portanto, em relação à forma como as novas tecnologias são introduzidas, sinalizando que deve existir a preocupação com os usuários, frequentemente já sobrecarregados com outros encargos.

O fato de “ansiedade” ter sido eleita a palavra do ano por alguns pesquisadores, pode indicar esse momento de apreensão, preocupação ou temor em relação à atual realidade. Na prática da Medicina, a sensação de desamparo passou a ser uma constante, ao menos para aqueles comprometidos com a atualização profissional. Esse sentimento resulta de questões que transcendem a Ciência Médica, abrangendo temas que tangenciam o Direito, a Ciência de Dados e até mesmo a Publicidade.

No âmbito jurídico, observamos os Tribunais tratando a relação médico-paciente como de consumo e impondo ao prestador de serviço, inúmeras obrigações, sem as quais não é possível demonstrar – judicial ou administrativamente – que atuou de forma diligente, ficando sujeito a penalidades ou indenizações. Nossa agência sanitária – Anvisa – regula os dispositivos médicos e exige, para aprovação, avaliações técnicas rigorosas, impondo aos usuários – os médicos – capacitação para operá-los de forma diligente e responsável, o que comumente envolve conhecimentos de programação e aprendizado de máquinas, o que é alheio à formação da maioria dos profissionais. O CFM, por sua vez, cria regras para publicidade e propaganda tão complexas e extensas que desmotivam sua leitura e dificultam sua aplicação .

A multidisciplinaridade que adentrou ao universo da saúde se depara com um profissional já sobrecarregado pelas infindáveis publicações científicas que proliferam em sua própria especialidade . Não há tempo suficiente para ler todos os estudos e comparecer a todos os congressos e a sensação é a de constante frustração.

Um endocrinologista, por exemplo, além de acompanhar os mais recentes estudos publicados globalmente, deve compreender as inovações tecnológicas dos sistemas de infusão de insulina, que atualmente envolvem sensores de última geração, combinados com algoritmos de inteligência artificial. Porém, caso ele seja convidado pela indústria a participar de um evento – como almoço, por exemplo – para conhecer esses novos dispositivos e suas complexas tecnologias, precisa informar ao CFM sobre sua participação, pois, segundo a Resolução CFM 2.386/24, pode sugerir um conflito de interesse . Na clínica, ao indicar ao paciente o medicamento ou dispositivo mais adequado a ser utilizado no tratamento, deve informá-lo e esclarecer sobre possíveis riscos e benefícios de cada uma das opções disponíveis, preferencialmente por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE . E nem cogitar em copiar um TCLE da internet, ou mesmo elaborar um documento padrão, com lacunas em branco, pois este será desconsiderado em eventual litígio .

Comparada a décadas passadas, é certo que a Medicina avançou significativamente em relação a diagnósticos e tratamentos, além da prevenção e predição, em grande parte decorrente dos avanços científicos e tecnológicos em diversas especialidades, como a reprodução assistida e a cirurgia robótica, por exemplo. A velocidade e a complexidade desses avanços não foram acompanhadas pela atualização do perfil do médico, tampouco o sistema jurídico se adaptou às novas relações sociais. Nas especialidades acima mencionadas, enfrentamos questões acerca da criopreservação de embriões, que possibilita a paternidade post mortem, sem que exista um respaldo legal. Na cirurgia assistida por robôs, por sua vez, emerge a incerteza na responsabilização por eventual falha da máquina. Essas e muitas outras situações ainda carecem de previsão em lei, e continuam gerando enorme insegurança jurídica.

Vislumbramos, portanto, mais uma vez, o paradoxo das novas tecnologias que, apesar de desenvolvidas para melhorar a vida humana e solucionar problemas, frequentemente introduzem novos desafios, novas formas de dependência ou criam consequências imprevistas que tornam ainda mais complexa nossa existência.

Outros problemas mais concretos, mas não menos desafiadores decorrem do aumento no número de novos profissionais da saúde que muitas vezes, pela pouca experiência, forçam a entrada no mercado de trabalho por meio de práticas comerciais desleais, desvirtuando o propósito da Medicina. A redução da remuneração é outra questão invariavelmente trazida ao debate, assim como a sobrecarga de trabalho, que prejudica a qualidade da assistência compromete a contínua atualização do profissional.

O desamparo descrito por Freud em O mal-estar na civilização, pode facilmente ser identificado diante dos desafios contemporâneos do médico, seja no ambiente de trabalho, permeado pelas novas tecnologias, frequentemente ambivalentes e com efeitos nem sempre desejáveis, bem como nas relações humanas, com o paciente ou outros profissionais, que demandam do médico uma nova postura, frente a uma sociedade muito mais complexa e heterogênea. As limitações do profissional, enquanto ser humano, passam a ser ignoradas, gerando expectativas irreais sobre ele.

Se a sensação de desamparo na contemporaneidade não é nova, também é complexa a busca por soluções e ingênua é a propaganda que promete remédios milagrosos ou respostas simplistas.

Faz-se necessário construir um novo cenário, a partir da compreensão das adversidades, visando delimitar as funções e responsabilidades dos envolvidos. Para tanto, é importante unir esforços em diversas áreas do conhecimento, para que, ao final, seja possível obter uma efetiva melhoria em todo o ambiente da Saúde.

No âmbito do Direito Médico, é essencial trazer à luz as delicadas questões ora enfrentadas pelos profissionais da saúde e promover a união entre o Legislativo, o Judiciário, as entidades de classe, instituições de ensino e a própria população médica, que almeja melhorar as condições de trabalho e obter reconhecimento da sociedade, diante de ofício tão nobre, que sempre foi valorizado ao longo da História.

Por fim, não nos esqueçamos de que analisando retrospectivamente podemos considerar os recentes avanços da Medicina como motivo de comemoração. Que essas boas novas sirvam de motivação e renovem a esperança para a construção de um ambiente mais saudável e equitativo, tornando 2025 uma oportunidade para novos recomeços.


*Gisele Machado Figueiredo Boselli é Advogada. Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV. Especialista em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR. Membro da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP. Associada ao Instituto Miguel Kfouri Neto – Direito Médico e da Saúde.

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