Barreiras enfrentadas por crianças com malformações
Apesar dos avanços pontuais na saúde pública infantil, crianças com malformações congênitas seguem invisíveis dentro do sistema brasileiro. Um estudo da revista Organicom, da ECA/USP, aponta que o Brasil enfrenta fluxos recorrentes de desinformação em saúde, o que dificulta a triagem precoce e o encaminhamento correto de casos que exigem atenção especializada. Essa desinformação, aliada à escassez de profissionais qualificados e à ausência de reconhecimento da cirurgia craniomaxilofacial como prioridade de saúde pública, forma um cenário de negligência institucional.
Para a cirurgiã plástica e craniomaxilofacial Clarice Abreu, a falta de visibilidade do tema é parte de um problema maior: a desvalorização de áreas médicas que atuam justamente onde a vulnerabilidade é mais sensível, na infância e na deformidade. “Estamos falando de crianças que poderiam ter uma vida normal com uma cirurgia simples, mas que permanecem por anos em filas, ou sequer chegam a ser avaliadas. Isso é uma violência silenciosa”, afirma.
Segundo a médica, o número de especialistas qualificados para atuar com malformações craniofaciais é extremamente baixo, e muitos centros não possuem equipes multidisciplinares habilitadas para oferecer um cuidado integral. “São poucos os profissionais formados com a complexidade técnica necessária para lidar com esses casos. E o que é ainda mais grave: não há incentivo à formação, nem políticas públicas que reconheçam essa área de atuação como estratégica dentro do SUS”, alerta.
Além da escassez de profissionais, falta reconhecimento institucional. A cirurgia craniomaxilofacial não é amplamente compreendida nem pela população nem por muitos profissionais de saúde da atenção básica. “Sem saber o que procurar, os médicos de família acabam encaminhando essas crianças para áreas inadequadas ou atrasando o diagnóstico”, explica Clarice. A consequência é a fragmentação do cuidado e o agravamento de condições que poderiam ter sido resolvidas com menor sofrimento físico e emocional.
Outro fator que contribui para o apagamento dessas crianças é a desinformação, muitas vezes impulsionada por redes sociais. “Há uma banalização do conhecimento técnico. Cirurgias reparadoras são divulgadas de forma romantizada ou equivocada, sem contextualização científica. Isso gera desconfiança na medicina especializada e atrasa ainda mais a busca por atendimento qualificado”, afirma.
Clarice também critica a inexistência de um protocolo nacional de linha de cuidado para crianças com malformações. Na sua visão, seria fundamental criar diretrizes clínicas, estabelecer fluxos padronizados de triagem e investir na capacitação de equipes multiprofissionais. “A ausência de um caminho estruturado faz com que essas famílias peregrinem entre especialidades, exames e promessas, enquanto a criança perde tempo precioso para seu desenvolvimento”, pontua.
Para mudar esse quadro, a médica propõe quatro frentes principais: campanhas de informação pública com base científica, capacitação de profissionais da atenção básica, criação de centros regionais de referência e a valorização oficial da cirurgia craniomaxilofacial como área estratégica dentro do SUS. “Enquanto não reconhecermos que essas crianças têm urgência e têm direito, continuaremos reproduzindo uma lógica de exclusão estrutural”, conclui.