Contratos farmacêuticos: como evitar prejuízos cambiais
Por Talita Orsini de Castro Garcia, Gabriela Junqueira Lacerda e Natália Portolez Ferreira Neves

Na indústria farmacêutica, onde inovação, regulação e competitividade se entrelaçam, garantir previsibilidade nos contratos é um desafio constante. Empresas do setor enfrentam, de um lado, custos de insumos importados sujeitos às flutuações cambiais e, de outro, uma forte regulação da ANVISA e da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos – CMED, que restringem a liberdade de precificação. Nesse contexto, as cláusulas de reajuste deixam de ser um detalhe técnico e se tornam uma ferramenta estratégica para proteger a saúde financeira dos contratos e a própria continuidade das operações de fornecimento e distribuição de medicamentos, especialmente em cadeias complexas que envolvem desde fornecedores internacionais até distribuidores e representantes locais.
Boa parte dos ingredientes ativos (APIs), embalagens e tecnologias utilizadas na fabricação de medicamentos depende da importação, muitas vezes de diferentes continentes, como, por exemplo, medicamentos que utilizam APIs da Ásia e embalagens da Europa. Isso coloca as empresas farmacêuticas em uma posição vulnerável frente às variações no câmbio e aos custos logísticos associados ao transporte internacional.

Quando os contratos não preveem mecanismos para ajuste de preços, as margens podem ser rapidamente corroídas, afetando a execução das obrigações. O problema é agravado pelo fato do setor não ter liberdade para repassar automaticamente esses custos aos consumidores, uma vez que os preços dos medicamentos são controlados, haja vista a regulação do setor farmacêutico conforme Lei nº 10.742/2003, com o objetivo de promover a assistência farmacêutica à população, mas sem comprometer a sustentabilidade do setor farmacêutico. Sem cláusulas adequadas, o contrato fica exposto a riscos financeiros, com reflexos diretos em cronogramas de produção, abastecimento de estoque e cumprimento de prazos com distribuidores e hospitais e até mesmo à possibilidade de ruptura.
Além da flutuação cambial, a regulação também gera desequilíbrios. Novas exigências da ANVISA, como ajustes em rotulagem, fármaco vigilância ou requisitos técnicos implicam em custos imediatos que exigem adaptação rápida das áreas de qualidade, produção e logística. Alterações na tabela da CMED ou mudanças tributárias também podem impactar contratos de fornecimento e distribuição, além das altas multas aplicadas pela CMED em casos de descumprimentos, ainda que fruto de erros de cadastros. Sem um mecanismo claro para renegociação, esses custos adicionais podem recair sobre uma das partes, gerando disputas ou até paralisando fluxos de fornecimento já estruturados.
Do ponto de vista jurídico, o Código Civil oferece instrumentos para revisão de contratos em casos de onerosidade excessiva e imprevisibilidade, como previsto nos artigos 317 e 478. Contudo, a experiência demonstra que recorrer ao Judiciário é medida extrema haja vista que as respostas não possuem a agilidade necessária às dinâmicas de mercado. Além disso, a demonstração da imprevisibilidade é interpretada de forma restritiva, exigindo que o evento seja realmente inesperado e fora do risco normal do negócio. Oscilações cambiais, aumento de custos de insumos ou variações de mercado, por exemplo, costumam ser considerados riscos inerentes à atividade econômica e, portanto, previsíveis, ainda que intensificados por fatores externos.
Outro ponto sensível é a comprovação da onerosidade excessiva, que deve ser objetiva e substancial, não bastando a mera redução de margem de lucro ou desequilíbrio momentâneo de fluxo de caixa. A parte interessada precisa demonstrar que o cumprimento integral do contrato se tornou desproporcional em relação à contraprestação, a ponto de comprometer a própria equidade do vínculo. Ademais, a relação de causalidade entre o evento imprevisível e o desequilíbrio contratual também é desafiadora, visto que geralmente há múltiplos fatores — internos e externos — que influenciam a execução do contrato, o que torna complexa a tarefa de isolar o fato imprevisível como causa determinante da onerosidade.
Por isso, o momento mais eficaz para lidar com esses riscos é a fase de negociação contratual, quando ainda é possível estruturar soluções preventivas, que dialoguem com a dinâmica da operação de cada empresa.
Entre as alternativas contratuais mais eficazes, destacam-se as cláusulas de reajuste. As mais comuns associam os preços a índices de inflação, como o IPCA ou IGP-M, mas esses índices não são ideais para lidar com a volatilidade cambial. Uma solução mais eficaz são as cláusulas híbridas, que combinam um índice nacional e gatilhos cambiais, tornando os contratos mais aderentes à realidade econômica de operações fortemente atreladas a importações e variação do dólar. Outra alternativa importante é a cláusula de hardship, que permite renegociar os termos do contrato caso ocorram mudanças regulatórias significativas que imponham custos desproporcionais, por exemplo, novas exigências de farmacovigilância ou adaptações de embalagens em larga escala.
Do ponto de vista contratual, algumas boas práticas se destacam. A primeira é definir claramente como os riscos serão compartilhados: até que ponto a variação cambial será absorvida por uma das partes e a partir de que ponto ela será dividida. Em seguida, é importante estabelecer gatilhos para renegociação, como variações superiores a um determinado marco em determinado período ou a implementação de novas normas regulatórias que gerem custos adicionais. Por fim, é fundamental prever mecanismos para a resolução rápida de conflitos, como comitês de renegociação ou mediação, evitando que o impasse se torne em uma disputa judicial e comprometa o fluxo da operação no meio do ciclo produtivo ou de distribuição
As decisões dos tribunais brasileiros também oferecem importantes referências. O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido algumas hipóteses em que variações cambiais, desde que caracterizadas como extraordinárias, podem justificar a revisão de contratos e, em alguns casos, determinou a repartição proporcional dos riscos entre as partes. Esses entendimentos reforçam a importância de incluir no contrato cláusulas que regulem marcos que saem da previsibilidade assumida pelas partes, viabilizando flexibilidade e proteção contra cenários imprevisíveis, o que, na prática, significa evitar que uma oscilação macroeconômica ou regulatória comprometa etapas essenciais da cadeia de produção e fornecimento de medicamentos
No cenário atual, marcado pela instabilidade econômica, taxações internacionais, flutuações cambiais e mudanças regulatórias constantes, cláusulas de reajuste bem estruturadas são não só um diferencial competitivo, mas também uma necessidade para a saudabilidade das operações empresariais.
Em resumo, lidar com as variações cambiais e regulatórias não deve ser uma abordagem reativa, mas sim uma estratégia preventiva. Ao negociar ajustes comerciais que contenham, em seu bojo, cláusulas de reajuste com índices adequados, gatilhos objetivos e mecanismos de renegociação, um contrato bem estruturado dialoga diretamente com a realidade operacional da indústria farmacêutica: protege a margem diante da importação de insumos, garante previsibilidade frente às exigências regulatórias e assegura que a produção e a distribuição não sejam interrompidas. O contrato se torna um elo entre a estratégia empresarial e a prática operacional, funcionando como ferramenta de governança e continuidade em um setor em que falhas contratuais podem comprometer não apenas finanças, mas também o abastecimento de medicamentos essenciais.
*Talita Orsini de Castro Garcia é especialista da área Contratual e sócia do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados, Gabriela Junqueira Lacerda e Natália Portolez Ferreira Neves são especialistas da área contratual do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
