Consentimento na prática médica: uma análise a partir da bioética

Por Marcela Freire

Não é possível falar sobre consentimento voluntário sem antes mencionar o dever informacional e a bioética. O dever informacional refere-se ao dever do médico de fornecer ao paciente informações completas e compreensíveis sobre o tratamento ou procedimento proposto.

O dever informacional deve ser cumprido de duas formas: verbal e escrita – a escrita é por meio do termo de consentimento livre e esclarecido. Em ambas as formas deve ser informado ao paciente os elementos essenciais do procedimento/ tratamento, como a natureza, os riscos, benefício e alternativas disponíveis.

A bioética, por sua vez, é o campo de estudo que investiga as questões éticas relacionadas à vida e a saúde. Surgiu para examinar as práticas médicas na área da saúde a partir de valores morais, a fim de que elas respeitem os direitos individuais, fundamentais e princípio éticos, como o da autonomia.

O surgimento da bioética se deu em virtude dos fatos ocorridos durante o Tribunal de Nuremberg (1945), após a Segunda Guerra Mundial, que levou à julgamento médicos e cientistas responsáveis pelas atrocidades cometidas durante a Alemanha Nazista. Eles foram acusados de cometerem crimes durante a realização de experimentos em humanos, que, em suma, foram feitos nos campos de concentração contra judeus e minorias .

A partir do Tribunal de Nuremberg foi criado o Código de Nuremberg (1947), que foi uma resposta às atrocidades cometidas, a fim de impedir experimentos contra seres humanos de forma involuntária novamente, como aconteceu no Tribunal.

O Código de Nuremberg estabeleceu padrões para a realização de experiências com seres humanos, trazendo reflexões sobre o consentimento voluntário do participante, a dignidade da pessoa humana e direitos humanos, sendo o princípio da autonomia o que assumiu maior peso.

Em meio do Código de Nuremberg foram estabelecidos princípios que devem ser seguidos durante as diversas etapas dos procedimentos médicos e de pesquisas que envolvam seres humanos, sendo eles:

  1. Consentimento Voluntário;
  2. Produção de resultados vantajosos;
  3. Deve ser baseado em resultados conquistados;
  4. Deve evitar sofrimento físico, mental e danos desnecessários;
  5. Deve impedir mortes e invalidez permanente;
  6. Deve ter grau de risco aceitável;
  7. Deve seguir cuidados especiais;
  8. Deve ser realizado em pessoas cientificamente qualificadas;
  9. A pessoa deve ter liberdade para se retirar do experimento;
  10. Deve existir preparações para suspensão das etapas;

O consentimento voluntário é central nesse contexto e refere-se à permissão concedida pelo paciente de forma livre, esclarecida, sem qualquer vício de consentimento, para receber um tratamento médico clínico ou cirúrgico, ou para participar de uma pesquisa/ experimento.

José Henrique Pierangelli em seu livro “O Consentimento do Ofendido” destaca oito elementos constitutivos essenciais para a validade do consentimento, enfatizando a necessidade de informação adequada, liberdade de escolha e respeito à autonomia do paciente, sendo eles:

  1. Manifestação exterior, tácita ou expressa, suficiente para que o médico tome conhecimento de sua existência;
  2. A própria pessoa, tutelar do bem, é quem deve prestar o consentimento, quando apta a tanto. Consentimento de familiares, para paciente consciente, seria ineficiente;
  3. Consentimento de menor de 18 anos não terá validade e, quando for de maior idade, é importante a análise prévia de uma capacidade de entendimento e de autodeterminação no momento do ato de consentir;
  4. O consenciente deve estar claramente informado sobre a intervenção a que irá se submeter;
  5. O consentimento deve ser prestado antes do fato, pois a mera ratificação do consentimento não tem eficácia. A anterioridade leva à possibilidade de desistência, se necessária;
  6. O consentimento deve ser livre, já que o vício, o dolo, a violência e o erro excluiriam sua validade;
  7. Consentimento putativo, levando o médico ao erro, supondo ser válido aquele, constitui um erro de proibição direto (artigo 20, § 1º do Código Penal);
  8. O consentimento do paciente não pode vir de encontro à ordem pública e aos bons costumes;

Conforme pode ser observado acima, José Henrique Pierangelli trata, no item 4, do dever informacional e, nos demais itens, de todos os seus desdobramentos quanto a validade.

Nesse sentido, é válido mencionar os artigos 46 e 59 do Código de Ética Médica, bem como o art. 6º, inciso III do Código de Defesa do consumidor, visto que esses tratam, especificamente, da necessidade da informação, senão vejamos:

Código de Ética Médica –É vedado ao médico: Artigo 46 – Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida”.

É vedado ao médico: Artigo 59 – Deixar de informar ao paciente o diagnóstico ou prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, neste caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal”.

Código do Consumidor – Artigo 6º, III – “São direitos básicos do consumidor: a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam”.

Além do dever informacional, conforme amplamente tratado acima, há a necessidade de observância dos princípios da bioética e aos requisitos de validade, fazem com que o consentimento do paciente seja verdadeiramente voluntário, motivo pelo qual, quando um desses requisitos é negligenciado, o consentimento pode ser comprometido, levando à decisões não informadas ou influenciadas, o que mina a autonomia do paciente e compromete a integridade da relação médico-paciente.

A relação médico- paciente tem como pilares essenciais: a comunicação, a transparência, respeito, a ética médica e a colaboração mútua. Para que essa relação seja construída e mantida de forma saudável, é fundamental o cumprimento do dever informacional, para que não exista prejuízo ao consentimento e a autodeterminação do paciente.

Nos dias atuais, considerado o crescimento exponencial da judicialização da medicina, alguns cuidados são necessários, a fim de resguardar a prática médica, dentre eles, o uso de documentos médicos, a partir da perspectiva do Direito Médico Preventivo.

É imprescindível que o médico reúna documentação que comprove o fornecimento das informações ao paciente. Essa documentação pode ser extremamente útil em caso de necessidade de comprovação de que o paciente foi devidamente informado. Ao manter registros detalhados das discussões sobre o tratamento proposto, bem como da obtenção do consentimento informado, o médico não apenas cumpre com seu dever ético e legal, mas também se resguarda em situações que possam requerer a demonstração da adequada comunicação com o paciente.

Os documentos médicos mais importantes são o prontuário médico e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) específico para o procedimento ou tratamento em questão.

O prontuário médico é essencial pois registra todas as informações relevantes sobre o histórico de saúde do paciente, incluindo exame clínico, queixas, diagnósticos, tratamentos realizados, orientações fornecidas e o registro do processo de obtenção do consentimento.

Já o TCLE específico detalha de forma clara e compreensível os aspectos do procedimento ou tratamento proposto, os riscos envolvidos, benefícios esperados, alternativas disponíveis e as consequências da recusa. Ambos os documentos são fundamentais para evidenciar que o paciente foi devidamente informado e que seu consentimento foi dado de maneira livre e autônoma.

A negligência médica em relação ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) é lamentavelmente comum na prática clínica. Muitos médicos recorrem a TCLEs genéricos, frequentemente retirados da internet, que não atendem aos padrões necessários de informação completa e compreensível.

Judicialmente os Tribunais tendem a responsabilizar os médicos por falha no dever informacional, configurada em virtude do caráter genérico do TCLE utilizado, isto é, sem informações especificas a respeito do tratamento/ procedimento a ser realizado.

No âmbito do STJ há uma decisão onde um médico foi condenado ao pagamento de R$ 100.000,00 (cem mil reais) em virtude da falha do dever informacional. Veja:

*Recurso Especial. Violação ao ART. 535 do CPC/1973. Não ocorrência. Responsabilidade civil do médico por inadimplemento do dever de informação. Necessidade de especialização da informação e de consentimento específico. Ofensa ao direito à autodeterminação. Valorização do sujeito de direito. Dano extrapatrimonial configurado.

Inadimplemento contratual. Boa-fé objetiva. Ônus da prova do médico.

RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO POR INADIMPLEMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO. NECESSIDADE DE ESPECIALIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO E DE CONSENTIMENTO ESPECÍFICO. OFENSA AO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO. VALORIZAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO. DANO EXTRAPATRIMONIAL CONFIGURADO.

INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. BOA-FÉ OBJETIVA. ÔNUS DA PROVA DO MÉDICO.

_________

1. Não há violação ao artigo 535, II, do CPC, quando, embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão da recorrente.

2. É uma prestação de serviços especial a relação existente entre médico e paciente, cujo objeto engloba deveres anexos, de suma relevância, para além da intervenção técnica dirigida ao tratamento da enfermidade, entre os quais está o dever de informação.

3. O dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante legal.

4. O princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais, é fonte do dever de informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do paciente e preconiza a valorização do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando a sua capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações.

5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.

6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento, que, ao final, lhe causou danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente.

7. O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital, orientado pelo princípio da colaboração processual, em que cada parte deve contribuir com os elementos probatórios que mais facilmente lhe possam ser exigidos.

8. A responsabilidade subjetiva do médico (CDC, art. 14, §4º) não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, se presentes os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às orientações técnicas aplicáveis. Precedentes.

9. Inexistente legislação específica para regulamentar o dever de informação, é o Código de Defesa do Consumidor o diploma que desempenha essa função, tornando bastante rigorosos os deveres de informar com clareza, lealdade e exatidão (art. 6º, III, art. 8º, art. 9º).

10. Recurso especial provido, para reconhecer o dano extrapatrimonial causado pelo inadimplemento do dever de informação.

(REsp n. 1.540.580/DF, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 2/8/2018, DJe de 4/9/2018.).

Diante da jurisprudência consolidada, fica evidente a importância do cumprimento do dever informacional na prática médica, especialmente no que diz respeito ao uso adequado do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O paciente tem o direito fundamental de receber informações claras, específicas e compreensíveis sobre os procedimentos médicos propostos, bem como seus riscos, benefícios e alternativas.

A utilização de TCLEs genéricos, desprovidos dessas informações específicas, pode resultar em sérias consequências legais para os médicos, incluindo condenações por falha no dever informacional e prejuízo à autonomia do paciente. Portanto, é imperativo que os profissionais de saúde adotem práticas rigorosas de documentação e comunicação com os pacientes, garantindo assim o pleno exercício de seus direitos e a integridade da relação médico-paciente.

Somente através do cumprimento efetivo do dever informacional e da observância aos princípios da bioética é possível assegurar uma prática médica ética, transparente e responsável, que respeite plenamente a dignidade e os direitos dos pacientes, promovendo, assim, o convencimento voluntário e consciente em relação aos procedimentos médicos propostos.


*Marcela Freire é Advogada atuante em Direito Médico e da Saúde, Vice- Presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/ Duque de Caxias.

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